"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







domingo, 25 de maio de 2008

PAISAGEM E MITO
















Ainda sob o influxo do insight que recebi do pequeno Matheus Kunz, abaixo transcrevo fragmentos dos “Diálogos do Paraíso Perdido”, apaixonado depoimento do escultor Francisco Brennand, em meados de 1990:




DIÁLOGOS DO PARAÍSO PERDIDO

F. Brennand



Cap. 2 - VISÃO MÍTICA DA TERRA


O mito das Terras Sagradas foi cultivado em toda a civilização ocidental através de seus melhores espíritos. (...) Certamente que este mito é tão antigo quanto o homem e se encontra enraizado em todos os tipos de cultura, quer ocidentais quer orientais.

Já no século XVI, em pleno Renascimento, quando o humanismo deslocara Deus do centro da história, para nesse centro colocar o homem, o mito permanece. Não foi por acaso que os “descobridores” portugueses deram ao nosso país o nome de Terra de Santa Cruz. (...)

Mas, o que não deixa de ser curioso, e até perturbador é que no século XIX grandes artistas europeus  em pleno florescimento da civilização industrial  voltassem suas vistas e os seus secretos pensamentos para as grandes florestas do mundo. Pintores como Paul Gauguin, que se instalou em Fatu-Iva, ilha das Marquesas, quase ainda antropofágica, à procura do que ele declarava ser indispensável para a plena realização de sua arte. (...) Com as antenas da imaginação Henry Rousseau, esse mágico ilustrador de florestas tropicais e bichos imaginários, reencontrou toda a verdadeira visão de um país distante e sagrado, ainda em estado selvagem. (...) mesmo escritores aparentemente afastados deste mundo mítico por preocupações psicológicas de outra espécie, como D. H. Lawrence e Thomas Mann (...) escreveram páginas de impressiva perplexidade sobre a alegria da vida livre, animal e humana; como se imaginassem escapar do fictício e entrar no coração da própria natureza selvagem. Eu mesmo não escapei ao sortilégio da busca de imagens míticas milenarmente repousadas no coração de nossa própria terra.

Isso levou-me, quase inconscientemente, a Euclydes da Cunha. E quando consultava À Margem da História, lá estavam as sugestões míticas inconscientemente procuradas, à página sete, em que o autor de Os Sertões sugere, contemplando a paisagem amazônica, “um recuo às mais remotas idades, como se rompêssemos os recessos de uma daquelas mudas florestas carboníferas...” Na continuação dessa história  e é esse exatamente o meu propósito,  de sublinhar o insólito desse acontecimento  alguma coisa interrompeu-me a atenção e fez desdobrar meus pensamentos em direções ocultas, como se, de repente, outras narrações se sobrepusessem à de Euclydes e se entremeassem às suas próprias linhas: a mesma paisagem sufocante de mil olhos que espreitam os mesmos pântanos tropicais, as mesmas árvores deformadas como em sonhos. Foi-me difícil admitir, mas o texto evocado era de Thomas Mann, do seu livro A Morte em Veneza, uma das mais completas descrições de uma floresta tropical que conheço, só comparável às pinturas florestais de Henry Rousseau (...) Essa página de um escritor alemão, em cujas veias corria o sangue brasileiro, não pode deixar de ser lida, pois tem toda uma conotação simbólica com o nosso mundo. (...) O personagem Aschembach é tocado pela vertigem daquilo que o poeta Baudelaire chamava “as inquietações malditas” e pela primeira vez sente fugir dos seus pés o sólido pavimento europeu. (...) sentiu a surpreendente consciência duma quebra de barreiras interiores (...) duma sede ardente e juvenil por cenas distantes.

 (...) Na verdade o que ele sentiu foi mais do que um desejo veemente de viajar (...) vindo com tal arrebatamento e paixão que se assemelhava a um seqüestro, quase a uma alucinação. Desejo visualmente projetado: (...) a sua fantasia (...) imaginou as maravilhas e terrores da terra multiforme. Ele viu. Contemplou uma paisagem, um pântano tropical sob um céu enegrecido, vaporoso, monstruoso,  uma espécie de mundo selvagem e primaveril  fileiras de ilhas, canais, pântanos e aluviais. Troncos de palmeiras ramalhudas erguiam-se, aqui e além, perto de escuros amontoados de fetos, tufos de espessa vegetação fértil, bojuda, grossa, com incrível florescência. Havia árvores deformadas como em sonhos que estendiam as suas raízes nuas, eretas, através do ar, para a terra ou para a água estagnada, sombria e esverdeada, onde gigantescas flores cor de leite flutuavam e onde estranhas aves, com curiosos bicos, olhavam prudentemente imóveis e silenciosas. Entre as nodosas hastes dum bosque de bambus, brilhavam os olhos de um tigre agachado  e ele sentiu o coração pulsar aterrorizado, ainda sob o inexplicável e veemente desejo. Então a visão desvaneceu-se.********************************************
Essa visão mítica da terra, perseguida por diversos artistas europeus, encontrou no nosso Francisco Brennand, um esplêndido território imaginativo, um acolhedor regaço de urvater, com suas avoengas barbas de algodão, tão universalmente nordestino e brasileiro. Vem desse patriarca da Várzea do Capibaribe, a intuição mítica e ancestral de que:
“(...) somos ao mesmo tempo árvores e frutos, mares e montanhas, animais e homens, alcançando esta (...) unidade original (...) que prefigura a nossa civilização tropical.”

Para fechar essa postagem, que já se alonga demais, trago a prosa-quase-poética de Paul Gauguin, num manuscrito do Tahiti, chamado Noa-noa, que bem poderia ser chamado de Paisagem e Mito, título que dá nome às minhas últimas reflexões, surgidas a partir da intuição do pequeno Matheus Kunz, desde lá da distante Copenhague:

Noa-noa


E a velha floresta cuja férvida seiva

se enriquece expandindo-se em
descuidadas ondas
esbeltas palmeiras cujos frutos se agitam
nos céus,
tamarindos, papoulas, fetos
gigantescos...
o pau-rosa e a manga que enchem o ar
com um fausto de sombra e de perfume,
árvore de ferro
e as que são pródigas de doces frutos 
carnes e pão  e as que se oferecem
por si,
muros e telhados de casas, altivas naves
e tálamos
tornam a vida um sonho belo, abolidos
o trabalho e a fome, a miséria e a inveja.
A Floresta, inteira ao cabo da vida
imensa,
morte perpétua, renascença sem fim.

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Não é à toa que o Brennand intitulou o livro de onde extraí o quase-poema acima, como Diálogos do Paraíso Perdido. Estamos “perdendo” o planeta Terra, como vaticina o milenar relato bíblico. 
Ainda há tempo de mudar a nossa civilização?
Perguntemos ao Bush Jr.
***

Dedico também esta postagem ao poeta Eurico, que anda às voltas com a busca das matrizes mitopoéticas da brasilidade (vide Tupã M'tói), mais ou menos ao modo como faz o Brennand, com as suas esculturas, e como fez o poeta-mor Fernando Pessoa, com o misticismo mítico de seu Mensagem(1934). 


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Fonte da imagem:


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Fonte do texto:
Brennand, Francisco, Diálogos do Paraíso Perdido,
Recife: Editora da Prefeitura da Cidade do Recife, 1990, pp. 88-108

3 comentários:

Ilaine disse...

Carlinhos!

Lendo este texto de Brennand, lembrei-me do escritor Stefan Zweig. Ele descreve de forma emocionante a sua chegada ao Rio de Janeiro em "Brasil, o país do futuro." Talvez conheças.

Obrigada por homenagear Matheus, meu menino de ouro. Voltamos sempre aqui, eu e ele.


Abraço forte
Ilaine

Carlinhos do Amparo disse...

Voltem sempre!
O Sítio estará sempre de portas e portões abertos para a família Kunz.

mari lou disse...

"somos ao mesmo tempo árvores e frutos, mares e montanhas, animais e homens"... e como fica isso, d onde tiraremos essas imagens-referência se hj o q se qer sempre mais e mais é o concreto, o plástico, o eletrônico?

acho q é tempo mesmo d pensar como estamos nos construindo como humanidade; quais são as imagens q qeremos para esse conceito.


bjo, carlinhos, ótimo post!

té!