"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Drummond visita o Sítio d'Olinda


















Fala, Amendoeira



«Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza - essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão - névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios eléctricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe o tronco. Nenhum desses incómodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom - cor final de decomposição, depois a qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como o cronista lhe perguntasse - fala, amendoeira - por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:- Não vês? Começo a outonear. É 21 de Março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono.Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.- E vais outoneando sozinha?- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.- Somos todos assim.- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exactamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.- Não me entristeças.- Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho.»


Carlos Drummond de Andrade - Fala, amendoeira (1957)
Publicada por Paulo Araújo em
1.2.06
http://dias-com-arvores.blogspot.com/2006/02/fala-amendoeira.html

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Deus numa caixa de sapatos ...




ou DUAS OU TRÊS IDEIAS SOBRE DEUS

por José Eduardo Agualusa


Em Maio de 1953 o semanário carioca, Flan, publicou uma entrevista do poeta e compositor Jayme Ovalle, conduzida por Vinicius de Moraes. À pergunta, "o que é o câncer?", respondeu Ovalle: "O câncer é a tristeza das células. A tristeza é que dá câncer". A frase serviria de epígrafe a um poema de Vinícius, "Sob o Trópico de Câncer", que começa assim: "Sai, Câncer / Desaparece, parte, sai do mundo / Volta à galáxia onde fermentam / Os íncubos da vida, de que és / A forma inversa". O último verso, "Deus está com câncer", ocorre-me com alguma frequência, sobretudo em momentos de desalento diante do estado do mundo. Não sei se Deus adoeceu, mas suspeito que há-de ter, realmente, perdido a alegria.
Na famosa entrevista conduzida por Vinicius, Ovalle também fala de Deus, aliás, com muito bom humor. "Deus fez muito rascunho", diz: "o hipopótamo, por exemplo, é um rascunho de Deus". E quando, logo a seguir, Vinicius quer saber porque fez Deus as mulheres feias, responde Ovalle: "As normalmente feias, Deus fez para casarem com homens bonitos. Quanto às irremediavelmente feias, foram feitas por Deus para povoar as igrejas de madrugada, para usarem grandes rosários e serem beatas".
Ao longo dos últimos milénios a humanidade tem prestado culto a bosques, rios, insectos, serpentes, lobos, ninfas, anjos, gigantes, bodes, estrelas, montanhas, ao fogo, ao vento, à noite, e a todas as combinações possíveis entre isto tudo. Ainda hoje há quem cultue uma pedra negra, e quem prefira rogar a ajuda de um simpático elefante com corpo de homem. Quanto a mim, de todos os deuses que tenho conhecido, em geografias muito diversas, afeiçoei-me sobretudo a um imenso Buda, algures na Malásia, que sorri, reclinado, enquanto dorme. Há também nos terreiros de candomblé, no Brasil, duas ou três figuras secundárias que desde há muito suscitam a minha simpatia e curiosidade. Um marinheiro, um negro elegantíssimo, de chapéu panamá na cabeça, e, sobretudo, um índio vestido com um cocar de penas e largas calças de couro. Não se trata de um índio brasileiro, como seria de esperar, mas de um índio norte-americano, saído directamente de um filme de caubóis. Suponho que a televisão e o cinema tenham tornado os índios norte-americanos mais familiares à generalidade dos brasileiros do que as suas próprias populações originais. Os pessimistas, talvez protestem, exaltados, ao darem com o índio - "alienação! Imperialismo cultural!". Os optimistas, pelo contrário, dirão que a divindade é mais um exemplo da extraordinária capacidade integradora da cultura popular brasileira, que tudo devora e assimila. Os mais crédulos hão-de querer saber, simplesmente, o que come o santo e quais os seus atributos. Eu gosto dele porque me leva de volta à infância. Um deus que nos leve de volta à infância - pode haver melhor? Ao lado do índio poderia colocar ainda o Pato Donald e um carrinho de rolamentos. Mas o índio, claro, tem outra dignidade. Fica-lhe melhor o papel de pequeno Deus.
A filha de uma amiga, uma menina de dois anos, ouvindo falar de Deus (a políticos e sacerdotes, bonecos animados, cantores e modelos) ficou curiosa. Sacudia, imperativa, as saias da mãe: "A menina quer Deus!". Um dia, porque ela insistisse, já chorando, e não havendo um deus que a sossegasse, deram-lhe o objecto que estava mais à mão: uma caixa de sapatos vazia. Resultou. Agora ela arrasta a caixa de sapatos para todo o lado. As visitas, vendo-a tão atenta à caixa, perguntam-lhe:
- O que levas aí dentro?
E ela, impávida, com os seus grandes olhos líquidos:
- É Deus!
Não a contesto. Acho mais provável que habite um deus dentro daquela caixa, venerando a menina, olhando por ela e protegendo-a, do que na casa daqueles que matam, ou se deixam matar, em nome Dele.


in Revista Pública - agosto 2006

Texto e imagem apud:
http://anomalias.weblog.com.pt/arquivo/cat_religiao