"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







quarta-feira, 8 de abril de 2009

O ovo ou a galinha - o homem ou a cultura?

**********************************


Prezado Compadre,


Eis que essas cartas estão tomando um rumo que me fazem lembrar de uma perguntinha, aparentemente inocente e jocosa, mas que se encaixa bem no nosso tema:
Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?
Ou seja, quem surgiu primeiro, o homem ou a cultura?

Perguntinhas da carinha de bobas, né? Mas , como diria Ortega y Gasset, não é em vão que elas trazem os curvos ganchos da interrogação.

Pois é nessa mesma linha de reflexão que o Dr. Crippa, mutatis mutandis, levanta algumas interessantes questões. À página 183, de seu Mito e Cultura, ele pergunta:

“Como poderia o homem criar palavras e símbolos antes de possuir o sentido da comunicação? Como edificaria uma casa antes de sentir a necessidade de habitar? Como ergueria um templo antes de uma experiência religiosa do sagrado?”

Três perguntinhas interessantes, e que vão, definitivamente, adiando o desfecho que julgávamos haver na carta anterior, num é mesmo, compadre?

Se não, vejamos: para o Dr. Crippa “há uma linguagem primordial, da mesma maneira que há um residir antes do habitar, um sentir e um imaginar que antecipam as expressões artísticas, uma manifestação primordial do sagrado antes de uma verdadeira experiência religiosa.”

Decorre dessas afirmações que: “para agir e expressar-se em formas e atividades significativas, o homem deve estar dotado de formas radicais que tornem possíveis tais expressões.”

Eis que surge uma nova questão que também adiará o desfecho desta carta, e que deixo para a meditação de meu compadre:

Se o espírito humano necessita dessas formas radicais que preexistiam numa anterioridade absoluta, num prius, de que instância recolhe o homem essas protoformas que orientam sua força imaginativa e criadora?


Até a próxima e
receba o abraço fraterno
de seu compadre e amigo,

Eurico


*******************************

sábado, 4 de abril de 2009

Epístola quase pirata: A cultura é um prius?


*******************************

Pois é, compadre,

Essa retórica por desfecho, implícita na forma de abordar o tema pelo Dr. Crippa, é o que eu iria tentar fazer nessas cartas. Desfecho, mesmo, só no final.
Mas, vacilei, e já que lhe adiantei o mote na carta anterior, vou piratear (copiar e colar) a proposição pela qual o Dr. Crippa irá pugnar durante todo o seu livro:

“a cultura não é aquilo que o homem faz, mas o contrário, é aquilo que faz com que o homem seja um determinado homem. Não pode ser uma realização do homem porque o homem, ele mesmo é o resultado da cultura.”

Vejamos o que ele sugere à p. 10, de seu Mito e Cultura:

"Se cada pessoa humana nasce com determinada fisionomia física e espiritual, é porque uma realidade constitutiva antecede as livres opções individuais e as decisões coletivas."

E prossegue:

"A cultura precede o homem e lhe oferece as possibilidades de agir e de fazer. O homem não poderia inventar a cultura, por mais que realizasse obras singulares nos diversos campos em que seu espírito possa se manifestar. O homem não cria a cultura. Ao contrário, ele é constituído pela cultura, nele mesmo, no seu mundo, na sua linguagem, nos seus valores. A cultura seria assim uma anterioridade absoluta frente à liberdade, uma anterioridade absoluta frente à imaginação, uma anterioridade absoluta frente à linguagem.
Os homens não criam a linguagem. Para isso teríamos que imaginar um povo não falando nada e, de repente, reunido, acertando sons, imagens, conceitos, ou seja, descobrindo ou escolhendo uma certa maneira de falar. Ou então um conglomerado de entes, que humanos não seriam ainda, escolhendo os símbolos, as formas de suas manifestações no campo da religião, da arte e da ciência. Isso é algo impossível. A cultura seria assim um precedente absoluto frente à consciência e frente à liberdade. Nenhum homem nasce por acaso e do nada. Nenhum homem surge absolutamente perdido no espaço. Há uma anterioridade determinante."

Finalmente, citando textualmente o filósofo paulista Vicente Ferreira da Silva, assim arremata o Dr. Crippa:

"Não se tem um exemplo sequer, empiricamente constatável, do aparecimento de uma civilização ou de uma cultura, a partir da deliberação e da vontade dos indivíduos. Nunca assistimos ao nascimento de uma cultura . . . Para que haja uma ação ou interação entre indivíduos, já deve estar previamente inaugurado o teatro social de uma ação culturalmente relevante. Uma cultura é um prius absoluto em relação a qualquer criação de bens ou de instituições derivadas..."¹


Acho que não me contive e já entrei no desfecho.
Mas, como o que estou postando ao compadre são meras cartas e não dissertações, fica assim mesmo.
E assim me despeço, pois acho que essa prosa já se alonga demais.
Seu compadre e amigo
Eurico
(Ah, compadre, prius é uma anterioridade absoluta, o que vem antes de tudo.)

¹
www.tropicologia.org.br/CONFERENCIA/1983cultura_brasil.html#nota3


*****************************************

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Coprocultura é Cultura?

*******************************


Prezado Compadre,
Tou aqui de novo.


E começo com mais essa provocação. Aqui no nordeste, quando um cidadão veste sua roupa domingueira e sai todo perfumado, ouve logo um gracejo:
Vai fazer exame de fezes, ?
É isso que me invoca, compadre, essa tal coprocultura. Parece que cultura é uma palavrinha que cabe em todo canto. Fui então ao pai dos burros e descobri que o biomédico vai "cultivar" os microorganismos que existem na amostra fecal do paciente. Copro é excremento, escória, fezes. E cultivar é fazer cultura. Pronto. Ta explicado.

Mas, cuidado. Um homem de vasta cultura não é um biomédico de larga experiência, compadre. Muitos bem que debruçam-se sobre verdadeiras escórias.
No entanto, há usos diferentes para essa palavrinha. Cada um “cultiva” um significado pra ela, ?
E a partir dessa palavra “cultivar”, passo a transcrever o que entende o Dr. Crippa sobre Cultura:

“O homem apresenta-se, desde o início, como cultivador. Não só da terra, dos rebanhos e das forças da natureza. Cultiva seus gestos, suas expressões, sua fisionomia, seus hábitos de habitar, de vestir-se e alimentar-se. Cultiva a amizade, cultiva o espírito, cultiva as relações com os entes divinos que iluminam a cena inaugural. Cultivar é um gesto profundamente humano quanto o de cultuar. Há um culto imerso no gesto de cultivar, da mesma maneira que todo gesto de cultuar manisfesta o cultivo de alguma coisa. Cuidar, pastorear, cultivar, cultuar, são gestos idênticos entre si. Trata-se sempre do homem reclinado sobre as coisas, sobre si mesmo, sobre suas significações últimas, adequando e moldando o mundo às formas que se constituem em seu espírito imaginativo e criador.” ( Adolpho Crippa, Mito e Cultura, 1975, p. 182)

Até aqui nada de novo, né, compadre. Entendi, disso tudo, que o homem "cultiva a cultura", se assim posso dizer. O danado é que muitos homens passam a vida a produzir material para dar trabalho aos biomédicos. Ou seja, a fazer merda na vida. rsrsrs

Aqui me despeço,
porém, me aguarde, pois o Crippa tá blefando, fazendo retórica por desfecho, com essa coisa de afirmar que a cultura é produto do homem. O livro avança e ele irá nos surpreender com as conclusões a que chega. Na verdade ele crê que é a cultura que faz o homem.

Mas, aguarde a próxima missiva.


**************************

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Que é, de fato, cultura?

**************************************

Prezado, compadre Carlinhos,

Acabo de ingressar em um Curso de Formação em Gestão Cultural para Pontos de Cultura. E, como o senhor sabe, gosto de definições, de etimologia e das provocações maiêuticas. Isso me traz até este Sítio intra-histórico d'Olinda, nesssa manhã de quinta-feira. Vim questionar essa palavrinha tão empregada por aí, sem preocupações maiores com o seu sentido último: Cultura.
Por isso fala-se em cultura antiga e moderna, cultura bizantina, egípcia, brasileira. Toma-se, até mesmo, erudição por cultura. Chamam-se, por conta disso, de cultos, aos homens letrados, e aos iletrados, de incultos. E, finalmente, tratam o folclore, os costumes, como se fossem sinônimos de cultura. Uma salada conceitual ou um sarapatel semântico?!

Que é de fato, cultura?

Não irei arriscar uma resposta de minha autoria, posto que não sou versado nessas coisas, mas, ando lendo um tal de Adolpho Crippa, MITO E CULTURA (Ed. Convívio, 1975), que traz certas luzes sobre o tema. Aos poucos, e com a ajuda e permissão do compadre, voltarei a este Sítio, para novas tertúlias e trarei um pouco do que este notável culturalista compreende sobre o sentido último da palavra cultura.

Sem mais,
despeço-me com um abraço fraterno.

Luiz Eurico,
seu compadre e amigo.

*********************************