"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







sábado, 10 de maio de 2008

Unamuno em Olinda




E por falar na idéia de Dom Miguel de Unamuno, de que há um momento presente não-histórico, participei, dia desses, de uma verdadeira cerimônia intra-histórica: a procissão de São Pedro dos Navegantes, da Colônia de Pescadores Z-4, em Olinda.
Foi admirável ver aqueles homens e mulheres, vestidos com simplicidade, muitos deles descalços, as pernas sujas de lama (havia chovido) cantando, pelas centenárias ruas d’Olinda, cantochões seculares e responsórios de ladainhas merencórias.
No entanto, a surpresa maior foi descobrir que os hinos sacros eram, aqui e ali, entrecortados por sambadas de coco. De fato, atrás da orquestra de metais que acompanhava o andor do santo, os pescadores divertiam-se com atabaques e tambores e, nos intervalos dos hinos, desandavam a cantar, a plenos pulmões, uma loa de coco-de-roda:

"Eu passei por São Pedro
e tirei meu chapéu
Salve São Pedro
Chaveiro do céu".

Não sei se o que cantavam era mesmo samba de coco-da-praia ou linha de terreiro de umbanda, mas que era uma legítima expressão popular, ah, lá isso era! Uma bela expressão intra-histórica da vida comunal olindense! Essa, por sinal, é uma característica que sempre está presente nas manifestações do povo de Olinda: a tradição festiva dos cortejos.
Decerto, não é só dos cortejos carnavalescos que vive a cidade-patrimônio, mas de procissões, como a do Desterro, do Senhor Morto ou a de São Pedro. Mui belo e rico é o cortejo da Procissão dos Passos, em que são visitados os diversos nichos do sítio histórico. Cortejos também há nas festas juninas, como o Acorda Povo, especialmente na comunidade do Amaro Branco, onde habitam os mais humildes moradores da antiga Marim dos índios Caetés.
Assim é que se gera a cultura popular: pela atividade espontânea do povo anônimo. Tanto faz se devotos ou foliões. Cultura se faz na rua. Por isso, de nada adianta o Poder Público intentar um folclore por meio de eventos criados por lei, artificialmente.
Essa maneira de atuar do Estado nasce de uma compreensão defeituosa da cultura e da tradição, elementos essencialmente intra-históricos. O erro consiste de uma tentativa inútil de desentranhá-los do seu nascedouro. A cultura popular é construção intra-histórica, ou seja, é do povo o seu cerne e a sua alma. Consegue assim, o Estado, ao legislar sobre costumes e folguedos intra-históricos, tão-somente transformá-los em meros espetáculos para fruição de turistas.
Essa visão distorcida dos brincantes e da cultura, a bem da verdade, não é privilégio de Olinda.
Não vi de perto, mas ouvi dizer, pela boca de viajantes, que, no Norte do Brasil, há índios à beira das rodovias, colares e pulseiras às mãos, acenando aos caminhoneiros. Induzidos pela compreensão mercantilista do turismo, parecem, eles mesmos, os silvícolas, exóticas criaturas artesanais, expostas no acostamento. Pobres nativos, são desalojados da vida tribal e fecunda do aconchego da sua intra-história, para serem lançados nesse triste espetáculo, que se rende ao apelo da mídia, do capital, e o que é pior, da necessidade.
É preciso que o Estado deixe fluir a intra-história cabloca, sertaneja ou praieira. Pois, pode parecer redundante o que lhes digo agora, mas, cultura popular se faz mesmo é pelo povo e para o povo. O mais não passa de uma artificial, estéril e inútil intervenção do Estado na espontaneidade dos anônimos geradores da tradição e dos costumes.

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Fonte da imagem

http://www.pauloklein.art.br/reportagem01b.htm

2 comentários:

lula eurico disse...

Concordo contigo, compadre.
Devemos deixar fluir a intra-história. Nela é que mora a verdaderia cultura popular, a tradição eterna e impalpável.
Abraçamigo e fraterno.

Loba disse...

Cultura se faz na rua, sem dúvida! E por este brasil a fora temos inumeros eventos culturais que mereceriam ser mostrados pela mídia - esta mesma que nãos e interessa por aquilo que não dá lucro né? rs...
Embora eu tenha tergiversado, saiba que adorei o texto. Me trouxe uma nova visão, novos termos e uma grande curiosidade.
Beijocas