"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







segunda-feira, 28 de abril de 2008

Moenda mitopoética



















Se miente más de la cuenta
por falta de fantasia:
también la verdad se inventa.

Antônio Machado





De volta de breve navegação por esse infomundo virtual, chego a este Sítio com a alma adocicada pela leitura de um poema no blog Eu-lírico, de meu compadre e amigo Luiz Eurico.
A leitura do texto e dos comentários no blog me instigaram a essa reflexão em contraponto ao poema:
Há no texto uma proposta de mitopoese, como costuma haver nos textos do compadre?
Ou seja, há a busca da construção da poesia a partir do mito?
Vejamos:

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Moenda de poesia
um contraponto ao poema Mel/a/nina



Diz que o mel da cana caiena embebeda tanto quanto o álcool.
Talvez seja por isso que regresso ao Sítio d’Olinda,
ainda embriagado com a leitura do texto quase pictórico, Mel/a/nina,
postado lá no blogue Eu-lírico.
Como se saíssem de dentro de uma moenda de bronze, se contorcem,
as palavras desse poema,
e erigem, verso a verso, pirâmides de açúcar,
espalhadas no pátio de um engenho: o poema.
Mas são espremidas, essas palavras, na moenda de um pequenino bangüê,
em que a cana macerada e cheirosa fosse moída lentamente,
pelas mãos cheias de doçura de jovens mucamas.
As mesmas franzinas orquídeas d’África, que enfeitiçavam,
e ainda enfeitiçam os Van der Leys, os Manuéis e Joaquins.
(Ainda os vejo cá no sítio, turistando, a beber água da Bica do Rosário,
ladeados por moreninhas faceiras).
É que esses galegos, doidos por mel de engenho com côco ralado e farinha,
também são doidos pelos lábios de mel dessas moçoilas espevitadas.
Lamber esse doce, lábios e mamilos, é, verdadeiramente, adentrar ao paraíso.
Água na boca, lamber teu céu...diz o poema.
No entanto, o paraíso aqui é o do paladar.
Os contos de fada já nos faziam salivar diante de casas confeitadas de açúcar.
Florestas de chocolate e rios de creme de leite.
Fantasia e embriaguez.
A gula era o chamariz de incautos meninos e meninas,
não somente para cair nas armadilhas da velha bruxa,
mas, e, principalmente, para adentrar ao mundo do maravilhoso, do mítico.
Um mítico Eldorado dos sabores.
Mas haveria então uma cilada de bruxo velho, naquele poema açucarado?
A garapa de cana caiena, o mel novo: seriam esses artifícios sinestésicos, emboscadas para o leitor?
Decerto, a doçaria colonial brasileira é guloseima dos anjos:
frutas em calda, compotas,
melado, rapaduras,
cajuadas, doce de leite,
alfenins, pés-de-moleque,
e bolos... ai! os bolos confeitados!
Eis o provável fundo mítico e intra-histórico (como diria Miguel de Unamuno) do poema, transmitido na língua portuguesa do Brasil, pelo sabor do açúcar, de geração em geração:
Açúcar místico, açúcar que amoleceu a alma dos homens dos trópicos. (G. Freyre)
Assim, o mito naquele poema escorre viscoso feito mel da cana caiena e, verdadeiramente, embebeda como o álcool.
Também escorre desse melado poema,
a melanina da pele das niñas, daqui e de Habana:
Menina-moça, açúcar preto, fruta viçando, sapoti cristalizada.
Prazer precoce, saboreado pelos ioiôs no engenho, pelos galegos de outrora, agora.
Por fim, leitor não te apresses, e veja deslizar o mito judaico-cristão
dos rios de leite e mel, irrigando as entrelinhas do poema..
Aqui, a terra prometida é de massapé, terra da pele roxa,
negra terra dos canaviais em que o poema afunda suas raízes.
Sendo as suas palavras, a cada verso, como o caule suculento da cana de açúcar, maceradas (desconstruídas?) pela moenda de bronze deste engenho mitopoético,
vertendo mel,
melaço,
melado,
Mel/a/nina,
com gosto e cheiro bem pernambucanos.


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Regresso ao Sítio d’Olinda com a boca adoçada, com os olhos lúbricos, cúpidos de gula, e com uma saudade danada de provar daquele mel de engenho com côco ralado, manjar absolutamente divino.
Leiam abaixo o poema açucarado:

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MEL/A/NINA


E
s
c
o
r
r
e
o mel

à flor da pele demerara, açúcar preto, mascavo
Mel
Melaço
Melado
Mel novo
Mel de engenho: terra roxa massapê terra de cana
caiena caiana cana de açúcar
moenda garapa tropicana
terra onde mana mel ( e leite) e a sacarose morena
melíflua voz de veludo melosa
pele de mel demoiselle cubista
lábios de mel língua doce
lamber teu céu linda noite
caldo de cana caiena favos de mel
A tez de fruta mestiça malícia cajus compotas
Sapotis cristalizados
E toda a doçaria colonial
Água na boca
Desliza mel na língua
portuguesa e um gosto de infância
lembrança de um confeito chamado nego bom.
Noite na pele negra rara demerara
A lua açúcar céu amorenado mel
Enamorado
Melado
Doce na boca,
delícia
no tacho
de bronze,
desliza
na cuba
daqui e de Habana:
de niña/mujer;
de sinhá/menina.
de mel, melanina.
Tua noite nos ilumina...
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Eurico
meados de 2000

Um comentário:

Loba disse...

lendo novamente, agora sabendo um pouco mais da melanina! rs...
e não é que por detrás da bela elaboração do poema ( lembra muito caetano) existe o escorrer dos desejos morenos?
mui belo. e ponto.
bjs