"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







quarta-feira, 23 de abril de 2008

Destilando o tempo


O tempo no Sítio d’Olinda não se subordina ao cronômetro. Aqui a vida tem um trato moroso e amoroso, descansado e lúdico. Não há a sofreguidão das ruas do comércio do Bairro Novo, da Cidade Baixa. Muito menos, a pressa da vizinha Recife.
No Sítio, tempo ganho é aquele que se perde na tertúlia, falando com uma mulher, tresnoitando pela rua com os amigos do peito, ou na bodega, a bebericar. Cá no sítio há momento para degustar um bom prato, conversar amenidades sob as mangueiras e muita... muita tranqüilidade para escrever.
E escrever da forma proposta por G. M. Kujawski* em que a escrita se torna "fruta do ócio, forma de destilar o tempo em gotas de conhecimento, como nos alambiques de engenho destilavam-se os pingos preciosos de aguardente, sem que ninguém tivesse pressa de vendê-la e obter lucro."
Aqui o tempo é fecundo, tempo freyreano**, como na descrição sossegada do mesmo Kujawski, e que abaixo transcrevo, para deleite dos vizinhos e visitantes sem pressa:

“Eis aqui toda a questão: ou o tempo é fecundo, ou a vida não é digna de ser vivida. Tempo fecundo é o que nos proporciona amor, amizade, sabor, interesse, paixão, inteligência. E a fecundidade do tempo depende da nossa forma de instalação na vida. Se passamos correndo pelas coisas, como um turista em suas excursões programadas pelas agências de viagem, caímos prisioneiros do tempo cronométrico, abstrato, mecânico. Se, pelo contrário, aprendemos a nos demorar deleitosamente nas coisas, fazendo delas a medida do nosso tempo, imprimimos ao curso da vida aquele traçado aventuroso que nos dirige os passos às grandes descobertas, sempre imprevistas, no campo do saber, da beleza, da sabedoria. Tais descobertas atendem pelo nome de inspiração. Sem inspiração a vida não adquire jamais impulso criador, direção construtiva. E sem a ruptura daquele tempo planificado, cronométrico (hora certa para isto, para aquilo, para aquilo outro), sem o abandono ao ritmo ondulante do acontecer vital, a inspiração não irrompe. (...). O tempo freyreano, o avesso do tempo cronológico, só poderia ser medido e simbolizado por uma ampulheta na qual a secura da areia fosse substituída pelo melado da rapadura, escorrendo num fio lento e viscoso, marcando a duração gozosa da pachorra nordestina. A pachorra nordestina não é sinal de indolência, nem de apatia, nem de má constituição, mas provém da plenitude de instalação do homem nordestino no seu meio ambiente, ou melhor, no conjunto de sua circunstância histórica, física e social (...).”

Esse é o tempo cá do Sítio, leitores e leitoras.
Abanquem-se e vamos prosear um pouco, pois aqui não se mata o tempo.
Matar o tempo é suicídio...

· Notas do Editor:
· * G. M Kujawski, Gilberto Freyre e a Pachorra nordestina, in Perspectivas Filosóficas, Duas Cidades, 1983, p. 70
· ** Tempo como o concebido por Gilberto Freyre em suas obras
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2 comentários:

Jacinta Dantas disse...

Olá,
que bom ter um comentário seu no Florescer. E que delícia esse post que con vive no tempo e com o tempo.
Tempos atrás escrevi alguma coisa com o título "vagando e divagando" - meu jeito de especular um pouquinho sobre esse irmão - o Tempo.
Um abraço
Jacinta

Loba disse...

não conheço o Sítio (infelizmente), mas se nele dá frutos como estes escritos eu acredito que o Tempo lá é tb de muita fertilidade!
adorando sua prosa!
beijo