"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







terça-feira, 22 de abril de 2008

Um Conto Olindense



A primeira postagem deste sítio tinha de ser mesmo com um conto que extraí do livro Sete Saltos Mortais, de autoria do compadre e amigo Luiz Eurico de Melo Neto:

foto Wagner Campelo - www.andaluciaimagen.com



Natureza-Morta

“sois, apenas, como neblina que
aparece por instante e logo se dissipa...”
(São Tiago 4:14)

Pernoitaram sobre a mesa, aquelas bolotas vermelhas, deixadas em uma vasilha de ágata. Algum sortilégio noturno, algum miasma, perpassou-lhes as polpas carnudas, e eis que amanheceram assim, bolorentas e maceradas. Aquele viço apetecível, aquela aparência rubra e suculenta se esvaiu. Um sopro letal deve haver na noite, no sereno. Algo imperceptível, que necessita das horas silenciosas da madrugada para atingir o cerne vital das frutas, das flores...de tudo...
Contemplá-las, ao desjejum, nessa manhã introspectiva, traz à alma um estranho pesar. Há pouco, no lavabo, o espelho deixava entrever os inúmeros fios brancos que em mim despontam, que desapontam. Sinto-me frágil infrutescência, pênsil e pingente, feito fruto maduro. Atravessei, sem perceber, as noites frias desses últimos cinqüenta anos. Alguma substância elemental me vai atingindo o âmago da vida. Uma informação incrustada em minhas moléculas diz, em código: és finito.
Agora os sonhos ainda estão por sonhar, e as gavetas estão prenhes de projetos. O vento, vindo da Sé, balança as frondosas mangueiras do Horto Del Rey; levanta a poeira na estrada que vai dar no Sítio das Quintas. Os dolbermans do casarão ao lado apoiam-se na muralha e espiam os garotos que jogam bola. Aqui, parece que o tempo não passou e as crianças ainda brincam na rua: bola de pé, bola de meia, bola de gude.
Os galos já descansam de suas saudações ao dia. Há mangas maduras caídas no chão. E as pessoas vão passando, apressadas em cumprir os seus desígnios...
Olinda acorda aqueles que dormiram e encontra os notívagos da Irmandade do Amparo, abraçando a alvorada. Devotas de Maria em busca da primeira missa, misturam-se ao cortejo profano dos boêmios em regresso.
Os ateliês da Cidade Alta abrem as janelas e deixam que a brisa lhes sopre a tinta fresca das telas. À mesa, o artista solitário fita as acerolas murchas no vaso. Seus pensamentos vacilam como as asas de uma mariposa, fatigada, depois de lutar a noite toda, tentando desprender-se das teias de uma aranha. Mais do que as idéias, vacilante está o seu corpo franzino. Suas juntas rangem como velhas cancelas. Pronuncia algumas palavras ao acaso. Saem de sua boca pássaros flácidos, que esvoaçam a custo, rente ao chão.
Encanecido. Um ser cansado e encanecido exala o cheiro fúngico dos velhos alfarrábios...
Sedentário. Só e sedentário. Desistiu das coisas mais comezinhas – desistiu da ação.
Hoje quedou-se a meditar diante da terrina de ágata. As acerolas, ontem vermelhas e macias,...antes suculentas e saudáveis...
Ah, o tempo...
O tempo é um escultor de máscaras mortuárias...
Recolhe os seus pincéis... a paleta treme entre seus dedos. Cores desbotadas, boninas, tons crepusculares, uma monocromia em pálidos tons de vermelho...pintava uma natureza-morta...
A sombra passageira de uma nuvem encobre as cumeeiras da cidade. Exausto, deita-se mansamente sobre o assoalho. Balbucia uma prece sem sentido... então, uma profunda e melancólica agonia o faz desfalecer...


Concluído em 06.12.05, este conto olindense.
Horto del Rey, Olinda.
A setinha leva ao Autor

2 comentários:

lula eurico disse...

Compadre, assim vc não deixa eu me mudar em paz. Ta sendo um parto, sair do Sítio das Quintas, mesmo morando em casa alugada. Olhe que eu desisto!
Abraçamigo e fraterno!

Loba disse...

deixa ver por onde começo... se pelo dono do blog ou pelo autor do conto! rs...
bom, o conto é uma destas surpresas que costumam deixar a gente boquiaberta. não deveria, eu sei. afinal, já o conheço como poeta e bom poeta. mas este conto é deliciosamente bonito. gosto de escritos confessionais, especialmente qdo a alma se deixa entrever nas letras do autor.
um beijo. num e noutro.