"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







terça-feira, 31 de agosto de 2010

Ortega y Gasset: ou, Diante de um Mar


"Para Moisés, o Herói, toda pedra é um manancial."
.................................................José Ortega y Gasset



O que é "Reabsorver a circunstância"?
Assim, duas palavrinhas e uma vogal fazendo a ponte..., fisga-me o amigo
Éverton, com "os curvos ganchos da interrogação."
Essa carinhosa e maiêutica forma de questionar, do amigo , me fez tomar coragem de prosear um pouco sobre Ortega y Gasset.
Do meu jeito, né. Sem introduções, nem conclusões, posto que minha humilde postagem não pode se arvorar em tese... talvez seja uma espécie de"ensaio", no sentido teatral da palavra rsrsrs
Falarei apenas do que é, em minha vida, a "circunstância Ortega".





Nas preliminares de suas Meditações, José Ortega y Gasset afirma que a obra-prima de Cervantes não se entrega à invasão intelectual dos açodados, dos que a querem tomar à força. Para invadi-la é necessária uma paciente aproximação, em um verdadeiro culto meditativo: (p. 59)

"Obra da categoria do Quixote tem que ser tomada como Jericó. Em amplos rodeios, nossos pensamentos e nossas emoções devem estreitá-la lentamente, sonorizando o ar com trombetas ideais."

Seguindo este clássico conselho, iniciarei os meus volteios em torno do pensamento orteguiano, volvendo o olhar ao entorno de mim mesmo, da minha vida e do meu derredor:


Ortega é um grande mar, eu diria mesmo um oceano. Estou sentado, pois, na areia da praia, observando o mar, ondas rebentando nas pedras, espumas, e uma massa imensa de água que vai indo em direção do horizonte, até tocar o céu. Como alcançar esse abismo azul-esverdeado, (ou seria verde-azulado), que me impõe sua presença túpida, aquática, vital?

Estou diante do oceano e não tenho fôlego dos peixes, para um mergulhar profundo. Lanço-me pois às águas rasas. E me permito braçadas pela orla. Cortarei as águas, a superfície das vagas, transversalmente. Essa é a solução que surge à minha mente, diante da força da rebentação e do perigo a que ela me leva.

Estar em Ortega é, em mim, estar no mar e cuidar de "saber a que me ater". Dentro da água, a única coisa plausível é saber o que fazer com a água. Pensar, aqui, é uma espécie de movimento natatório. Salvo dos primeiros perigos, braços cansados, deixo-me flutuar.
Boiar, eis outra maneira de estar no mar... O mar, sim, o mar. Aí está uma imensa circunstância. Sei disso, porque habito uma cidade litorânea. E a minha saída para o mundo, vez por outra, implica em mar.

Eis que nesses primeiros esforços natatórios, já estamos nos movendo em plena filosofia orteguiana: (eu avisei que iria ser de meu jeito... rsrsrs)
Meu corpo, a água, o mar imenso, a superfície e a profundidade, o latente e o patente, o horizonte: Ortega y Gasset, eis a minha circunstância. Estou nela e ela em mim. Não posso compreender plenamente o mar sem me atirar às águas. Parafraseando um provérbio oriental eu diria que posso até falar do estio a um esquimó, que vive o ano todo sob a neve. Porém, nada melhor do que caminharmos juntos numa caatinga esturricada, para que ele aprenda do estio com a própria pele. Do mesmo modo, com mil palavras eu descreveria a Antártida, a um mineiro que passa os dias do ano numa escura grota, sob o chão. Mas bastar-lhe-ão alguns minutos sob uma nevasca, para que ele a entenda em sua totalidade. Por isso, tento esses mergulhos rasos, em Ortega, como em um translúcido mar. Mergulhar fundo, no entanto, seria a melhor forma de alcançar-lhe a plenitude.

Não nego, com as imagens acima, a força da palavra. Isso seria negar a metáfora, e por conseguinte toda a linguagem, todo o pensamento, toda a cultura. Diga-se apenas que a palavra não está só no mundo dos signos. Nem só de boca, olhos e ouvidos, se faz a compreensão do mundo. Como dizia o poeta: "penso com todo o meu corpo'". Ortega diz mais. Diz: penso com minha própria vida. Assim, entender algo é saber como isso funciona na minha vida. E a vida é o próprio órgão da compreensão. Não a vida em geral, qualquer vida. Mas a tua vida e a minha, a vida dos esquimós e a dos mineiros, a vida de cada um, com sua perspectiva e sua pessoalidade. Bem entendido, a vida biográfica e não apenas biológica. Entender algo, pois, é fazer essa coisa passar por dentro da vida de um homem. Não há nada que se faça cultura, ciência ou poesia que não tenha se estreitado pelo âmbito estremecido de uma vida humana. Portanto, ao se falar em circunstância, há de se alertar que um eu, singular e original está a tomar a palavra. Eu falo de dentro da "circunstância Luiz Eurico de Melo Neto". Impossível falar fora de mim.



Sob essa premissa, a filosofia orteguiana é circunstancial. Aliás, não há filosofia, que, de certo modo, não seja circunstancial. A circunstância de Ortega y Gasset era a Espanha. Seu afã era saber a que se ater, naquela nação espanhola, do começo do século XX. Impressionei-me ao ver a força de sua indagação, em um brado que vem de dentro de sua obra:

-- Meu Deus, que é a Espanha?

José Ortega y Gasset, portanto, eis a minha circunstância, ao começar a me mover nesse tema. Aliás, o Ortega das Meditações do Quixote, traduzido ao português por G. M. Kujawski. Esta é, "concretamente", a minha circunstância, ao escrever essa postagem. Mas "circunstância", o que é isso, em Ortega?

Ajuda-me a cristalina voz orteguiana, nessas suas Meditações (p. 47):

"A circunstância! Circum-stantia! As coisas mudas em nosso próximo derredor! Muito perto, muito perto de nós, levantam as suas tácitas fisionomias com um gesto de humildade e de anelo, como necessitadas de que aceitemos a sua oferenda (...) E andamos cegos entre elas, os olhos fixos em remotas empresas, projetados para a conquista de longínquas cidades esquemáticas."

E põe-se a meditar nesse tema com amoroso deleite (p. 48):

"Creio muito a sério que uma das mudanças mais profundas do século atual em relação ao século XIX consistirá na transformação de nossa sensibilidade para as circunstâncias. Não sei que inquietude e precipitação reinava na passada centúria (...) que impelia os ânimos a omitirem todo o imediato e momentâneo da vida."

E nos exorta, com seu consabido altruísmo:

"Todas as nossas potências de seriedade gastamo-las na administração do Estado, na cultura social, nas lutas sociais, na ciência enquanto técnica, que enriquece a vida coletiva. Parecer-nos-ia frívolo dedicar uma parte de nossas melhores energias - e não somente resíduos - a organizar ao nosso redor a amizade, a construir um perfeito amor, a ver no gozo das coisas uma dimensão da vida que merece ser cultivada com procedimentos superiores. E como esta, múltiplas necessidades privadas ocultam envergonhadas o rosto nos rincões de nosso ânimo, porque não se quer outorgar-lhes cidadania, quero dizer, sentido cultural."

De certa forma, a citação acima faz com que volvamos à praia, e ao nosso entorno. A, circunstância, amigo Éverton, leitores, se inicia pelo nosso corpo, seja feio, bonito, doente ou saudável. E com ele escolheremos nadar ou boiar, para ver se nos salvamos do naufrágio das incertezas inumeráveis da vida cotidiana. Estou tão íntimamente ligado ao corpo da minha circunstância, que não me realizo sem ela. E corpo aqui implica em cérebro, mente, pensamento, linguagem, idioma, pátria, Ser. Estou encharcado de mim porque estou encharcado em minhas circunstâncias.

Daí o famoso enunciado orteguiano diz que: "Eu não sou apenas eu. Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela não me salvo a mim."(p. 52)

Isso quer dizer que, se não assumo, ou salvo, minha circunstância, não me realizo plenamente. Por isso, no mesmo trecho Ortega arremata (e com isso creio desprender-me do certeiro gancho da interrogação do amigo Éverton):

"Em suma: a reabsorção da circunstância é o destino concreto do homem'.

Não se trata de ser capturado por um destino, mas de apropriar-se do fado, da sina, da realidade tal como a encontro, reabsorvendo-a em meu ser. Reabsorver a circunstância consiste em incorporá-la ao meu projeto vital, humanizá-la. O homem se faz a si mesmo com as coisas que a ele se oferecem. A circunstância pois é como um mote dado aos repentistas. Cá na minha região lança-se um motivo, uma frase, com a qual os cantadores erigem a sua embolada. Dizem que glosam um mote forçado. Bem, reabsorver a circunstância seria "glosar" a realidade em derredor, modulando-a ou modelando-a de acordo com minha liberdade criadora. Talvez seja por essa razão que Ortega diz que o ser é um drama e que homem é o novelista de si mesmo. Escolhemos roteiros e scripts. No entanto, não custa lembrar da responsabilidade por essas escolhas, e que o âmbito dessa postagem não me permite tratar da questão da Moral, na obra orteguiana, que muitos, equivocadamente, consideram como relativista. Basta, por hora, dizer, sobre a questão moral, que, mesmo o juízo bíblico não é coletivo. Presta contas a Deus um homem singular e solitário. Mas todo o individual quer se erguer em um social. E a liberdade dessa reabsorção tem o limite dessa circunstância, a social, da qual não me posso alienar. Liberdade para reabsorver a circunstância não implica em relativismo moral. Disso falaremos em outra postagem.

Creio que essa prosa já encaminha o pensamento para a resposta à indagação feita pelo perspicaz e jovem amigo Éverton Vidal. Todavia, sabendo-o estudioso, e até professor de estudos bíblicos, explico-lhe que a imagem de Moisés ferindo a pedra, que ilustra esta postagem, busca apenas dar ênfase à maneira pela qual cada um reabsorve a própria circunstância. Uns, diante da pedra, morrem de sede. Moisés, o profeta, via em cada pedra um manancial. A epifania acontece, também, no circunstancial. Deus mesmo é o "lugar" onde "acontece" a vida do homem. "Nele nos movemos, vivemos e existimos." Sem absorver Deus, na circunstância, uns só enxergavam na pedra, a pedra. Moisés, o herói do circunstancial, enxerga na pedra uma fonte latente, que jorrou e ainda pode jorrar.

Sigo, tentando ferir as pedras enormes que se me apresentam na estrada. Aprouve Deus, no âmbito frágil da minha existência, que dessas pedras jorrem águas limpas e potáveis, e que eu possa compartilhá-las com os mais próximos.

Abraço fraterno

e desculpem os senões e as incoerências. Cá não filosofo, apenas releio, medito e trancrevo.

Paz e Bem!

***

Citações de Meditações do Quixote, José Ortega y Gasset, São Paulo, Duas Cidades, 1967. (comentadas por Julián Marías e traduzidas por G. M. Kujawski)



Fonte da imagem:
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgL5ozE6SdSMD_sgh8dkxmHzIizbO8Pyb999ne3zFnnJ07yiqlogcpHyLBzRsgMqfDRXSRWM0si-dMdMrEyBaVQ6i-LAVgeATh_SZufdxTccc-TxmxolCMwvNzI9SV4r9CXLrOQbe5e3wVl/s1600/moses_water_rock_strike.jpg