Fala, Amendoeira
«Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza - essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão - névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios eléctricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe o tronco. Nenhum desses incómodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom - cor final de decomposição, depois a qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como o cronista lhe perguntasse - fala, amendoeira - por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:- Não vês? Começo a outonear. É 21 de Março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono.Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.- E vais outoneando sozinha?- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.- Somos todos assim.- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exactamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.- Não me entristeças.- Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho.»
Carlos Drummond de Andrade - Fala, amendoeira (1957)
Publicada por Paulo Araújo em 1.2.06
http://dias-com-arvores.blogspot.com/2006/02/fala-amendoeira.html
Publicada por Paulo Araújo em 1.2.06
http://dias-com-arvores.blogspot.com/2006/02/fala-amendoeira.html
4 comentários:
Prezado Compadre, a amiga Ilaine pede para que o amigo conserte as cancelas virtuais do Sítio d'Olinda. É que um comentário vindo da Europa não conseguiu adentrar em tuas paradisíacas terras.
Aproveito o ensejo para ficar solidário com o Drummond, ou melhor, com a Amendoeira e dizer que é necessária a dignidade no outono da vida.
Abraçamigo e fraterno.
Outonizemo-nos com dignidade, compadre velho...
Ah, abra as cancelas do Sítio para os comentários da nossa amiga Ilaine. Ela quer deixar um recado no teu blogue.
Abraçamigo.
Oi, Carlinhos!
Pois, estou aqui novamente para falar de seu post, que aliás, é muito lindo. O texto de Drummond é magnífico. Enqanto eu lia, fiquei imaginando a amendoeira pelas ruas estreitas de Olinda, conversando com o cronista. Vi-a em muitos lugares, por entre as casas antigas e coloridas deste lugar - quase encantado. Havia também ali uma pedra- no meio do caminho- onde um poeta amigo meu- o seu compadre Eurico - fazia poesias. Belos poemas!
Carlinhos, aqui também está outoneando.
Abraço, com carinho
Ila
Você não imagina como eu gosto dessa crônica! Era adolescente quando, no colégio, me deram para ler e fazer a interpretação do texto. Desde lá, cada vez que a leio, me vem um cheiro doce de juventude, de manhãs de sol, de amendoeiras pelas calçadas...Me vem um sabor de felicidade...
Que bom que 'tropecei' na sua página...
Carinhosamente,
Jac.
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