ou DUAS OU TRÊS IDEIAS SOBRE DEUS
por José Eduardo Agualusa
Em Maio de 1953 o semanário carioca, Flan, publicou uma entrevista do poeta e compositor Jayme Ovalle, conduzida por Vinicius de Moraes. À pergunta, "o que é o câncer?", respondeu Ovalle: "O câncer é a tristeza das células. A tristeza é que dá câncer". A frase serviria de epígrafe a um poema de Vinícius, "Sob o Trópico de Câncer", que começa assim: "Sai, Câncer / Desaparece, parte, sai do mundo / Volta à galáxia onde fermentam / Os íncubos da vida, de que és / A forma inversa". O último verso, "Deus está com câncer", ocorre-me com alguma frequência, sobretudo em momentos de desalento diante do estado do mundo. Não sei se Deus adoeceu, mas suspeito que há-de ter, realmente, perdido a alegria.
Na famosa entrevista conduzida por Vinicius, Ovalle também fala de Deus, aliás, com muito bom humor. "Deus fez muito rascunho", diz: "o hipopótamo, por exemplo, é um rascunho de Deus". E quando, logo a seguir, Vinicius quer saber porque fez Deus as mulheres feias, responde Ovalle: "As normalmente feias, Deus fez para casarem com homens bonitos. Quanto às irremediavelmente feias, foram feitas por Deus para povoar as igrejas de madrugada, para usarem grandes rosários e serem beatas".
Ao longo dos últimos milénios a humanidade tem prestado culto a bosques, rios, insectos, serpentes, lobos, ninfas, anjos, gigantes, bodes, estrelas, montanhas, ao fogo, ao vento, à noite, e a todas as combinações possíveis entre isto tudo. Ainda hoje há quem cultue uma pedra negra, e quem prefira rogar a ajuda de um simpático elefante com corpo de homem. Quanto a mim, de todos os deuses que tenho conhecido, em geografias muito diversas, afeiçoei-me sobretudo a um imenso Buda, algures na Malásia, que sorri, reclinado, enquanto dorme. Há também nos terreiros de candomblé, no Brasil, duas ou três figuras secundárias que desde há muito suscitam a minha simpatia e curiosidade. Um marinheiro, um negro elegantíssimo, de chapéu panamá na cabeça, e, sobretudo, um índio vestido com um cocar de penas e largas calças de couro. Não se trata de um índio brasileiro, como seria de esperar, mas de um índio norte-americano, saído directamente de um filme de caubóis. Suponho que a televisão e o cinema tenham tornado os índios norte-americanos mais familiares à generalidade dos brasileiros do que as suas próprias populações originais. Os pessimistas, talvez protestem, exaltados, ao darem com o índio - "alienação! Imperialismo cultural!". Os optimistas, pelo contrário, dirão que a divindade é mais um exemplo da extraordinária capacidade integradora da cultura popular brasileira, que tudo devora e assimila. Os mais crédulos hão-de querer saber, simplesmente, o que come o santo e quais os seus atributos. Eu gosto dele porque me leva de volta à infância. Um deus que nos leve de volta à infância - pode haver melhor? Ao lado do índio poderia colocar ainda o Pato Donald e um carrinho de rolamentos. Mas o índio, claro, tem outra dignidade. Fica-lhe melhor o papel de pequeno Deus.
A filha de uma amiga, uma menina de dois anos, ouvindo falar de Deus (a políticos e sacerdotes, bonecos animados, cantores e modelos) ficou curiosa. Sacudia, imperativa, as saias da mãe: "A menina quer Deus!". Um dia, porque ela insistisse, já chorando, e não havendo um deus que a sossegasse, deram-lhe o objecto que estava mais à mão: uma caixa de sapatos vazia. Resultou. Agora ela arrasta a caixa de sapatos para todo o lado. As visitas, vendo-a tão atenta à caixa, perguntam-lhe:
- O que levas aí dentro?
E ela, impávida, com os seus grandes olhos líquidos:
- É Deus!
Não a contesto. Acho mais provável que habite um deus dentro daquela caixa, venerando a menina, olhando por ela e protegendo-a, do que na casa daqueles que matam, ou se deixam matar, em nome Dele.
Em Maio de 1953 o semanário carioca, Flan, publicou uma entrevista do poeta e compositor Jayme Ovalle, conduzida por Vinicius de Moraes. À pergunta, "o que é o câncer?", respondeu Ovalle: "O câncer é a tristeza das células. A tristeza é que dá câncer". A frase serviria de epígrafe a um poema de Vinícius, "Sob o Trópico de Câncer", que começa assim: "Sai, Câncer / Desaparece, parte, sai do mundo / Volta à galáxia onde fermentam / Os íncubos da vida, de que és / A forma inversa". O último verso, "Deus está com câncer", ocorre-me com alguma frequência, sobretudo em momentos de desalento diante do estado do mundo. Não sei se Deus adoeceu, mas suspeito que há-de ter, realmente, perdido a alegria.
Na famosa entrevista conduzida por Vinicius, Ovalle também fala de Deus, aliás, com muito bom humor. "Deus fez muito rascunho", diz: "o hipopótamo, por exemplo, é um rascunho de Deus". E quando, logo a seguir, Vinicius quer saber porque fez Deus as mulheres feias, responde Ovalle: "As normalmente feias, Deus fez para casarem com homens bonitos. Quanto às irremediavelmente feias, foram feitas por Deus para povoar as igrejas de madrugada, para usarem grandes rosários e serem beatas".
Ao longo dos últimos milénios a humanidade tem prestado culto a bosques, rios, insectos, serpentes, lobos, ninfas, anjos, gigantes, bodes, estrelas, montanhas, ao fogo, ao vento, à noite, e a todas as combinações possíveis entre isto tudo. Ainda hoje há quem cultue uma pedra negra, e quem prefira rogar a ajuda de um simpático elefante com corpo de homem. Quanto a mim, de todos os deuses que tenho conhecido, em geografias muito diversas, afeiçoei-me sobretudo a um imenso Buda, algures na Malásia, que sorri, reclinado, enquanto dorme. Há também nos terreiros de candomblé, no Brasil, duas ou três figuras secundárias que desde há muito suscitam a minha simpatia e curiosidade. Um marinheiro, um negro elegantíssimo, de chapéu panamá na cabeça, e, sobretudo, um índio vestido com um cocar de penas e largas calças de couro. Não se trata de um índio brasileiro, como seria de esperar, mas de um índio norte-americano, saído directamente de um filme de caubóis. Suponho que a televisão e o cinema tenham tornado os índios norte-americanos mais familiares à generalidade dos brasileiros do que as suas próprias populações originais. Os pessimistas, talvez protestem, exaltados, ao darem com o índio - "alienação! Imperialismo cultural!". Os optimistas, pelo contrário, dirão que a divindade é mais um exemplo da extraordinária capacidade integradora da cultura popular brasileira, que tudo devora e assimila. Os mais crédulos hão-de querer saber, simplesmente, o que come o santo e quais os seus atributos. Eu gosto dele porque me leva de volta à infância. Um deus que nos leve de volta à infância - pode haver melhor? Ao lado do índio poderia colocar ainda o Pato Donald e um carrinho de rolamentos. Mas o índio, claro, tem outra dignidade. Fica-lhe melhor o papel de pequeno Deus.
A filha de uma amiga, uma menina de dois anos, ouvindo falar de Deus (a políticos e sacerdotes, bonecos animados, cantores e modelos) ficou curiosa. Sacudia, imperativa, as saias da mãe: "A menina quer Deus!". Um dia, porque ela insistisse, já chorando, e não havendo um deus que a sossegasse, deram-lhe o objecto que estava mais à mão: uma caixa de sapatos vazia. Resultou. Agora ela arrasta a caixa de sapatos para todo o lado. As visitas, vendo-a tão atenta à caixa, perguntam-lhe:
- O que levas aí dentro?
E ela, impávida, com os seus grandes olhos líquidos:
- É Deus!
Não a contesto. Acho mais provável que habite um deus dentro daquela caixa, venerando a menina, olhando por ela e protegendo-a, do que na casa daqueles que matam, ou se deixam matar, em nome Dele.
in Revista Pública - agosto 2006
Texto e imagem apud:
http://anomalias.weblog.com.pt/arquivo/cat_religiao
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