"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







sexta-feira, 26 de abril de 2013

MORRE UMA DAMA DA CULTURA DE RAIZ

Pólo Médico da Ilha do Leite
Recife-PE

Quem vê as torres do pólo médico da Ilha do Leite, nem imagina como eram aquelas terras, há algumas décadas. Terras? Ali quase não havia terra. No início do século XX, só se viam pequenos bancos de areia, três pequenas casas de alvenaria e alguns palafitas. Uma dessas casas era do Vovô Luiz. Outra, do meu Tio-avô João, e a terceira de Seu Manuel Teodoro.
No meio dessa pequena povoação de mocambos (mocambo era o nome que na época se dava aos casebres ribeirinhos do Recife), erguia-se a pequena capela de Nossa Senhora da Saúde, que até hoje está lá, resistindo entre os espigões da Praça Miguel de Cervantes. Pois é, o antigo banco de areia hoje é uma grande praça e no seu entorno já não se vê o antigo manguezal. Grandes hospitais invadiram a margem do Rio Capibaribe e a cidade avançou sobre o antigo lugarejo de pescadores, carvoeiros, lavadeiras e outros ofícios da população ribeirinha, de maioria negra. 

Pça Miguel de Cervantes
(com igrejinha da Saúde)

Ali nasceu a nossa Carmelita Deodoro da Silva, nome de batismo, pois, na verdade, ela usava Ana Carmelita Teodoro. O seu pai, Manuel Teodoro, a chamava carinhosamente de “Calimita”...
Nós a conhecemos por Sinhá Nana, em casa de meus avós, quando ali ficou agregada, nos idos de 1960. Recentemente, o povo do Maracatu a conhecia por Don'Ana.


Capela de N. Sra da Saúde
Ilha do Leite - Recife-PE


Logo a família de Don'Ana, a de meus avós e todos os outros moradores seriam expulsos da Ilha do Leite, deslocando-se para a periferia da cidade. Tempos sombrios, em que a política do Estado Novo demolia os mocambos e a chamada Cidade Nova crescia, sob a política higienista da Liga Social contra o Mocambo, sufocando os mais pobres. Esse filme, infelizmente, a gente ainda vê hoje em dia...
Vovô Luiz e vovó Joaninha
(amigos de Don'Ana, desde a Ilha do Leite)
Álbum Família Melo
Don'Ana foi viver com meus avós, (que eram seus vizinhos desde a infância na Ilha), no bairro humilde do Pacheco, zona oeste do Recife. Lembro-me dela em sua azáfama diária: lavava e engomava os paletós de meu avô assoprando as brasas de um pesado ferro de passar. Era uma gigante para trabalhar. Não descansava. E além disso, cuidava com desvelo das crianças da casa. Vez por outra, nos levava ao Grupo Escolar, e apertava bem a nossa mãozinha, com medo de nos perder nas ruas. Era uma cuidadora amorosa e fiel.

Sinhá Nana (com balde na mão)
Álbum Família Melo
(3ª Trav. Estrada do Curado, Tejipió -  Década 1970)

Mas, quando se aproximava o carnaval, Don'Ana sumia. É o maracatu, dizia minha avó. Ela some nos dias que antecedem a festa e só volta na quarta- feira de cinzas. Eu, menino curioso, ficava intrigado com aquilo. Para onde ia a nossa Sinhá Nana?
Menininha
(calunga do Almirante)

Hoje eu sei porque ela sumia. É que ela era uma dama do paço, ou do “paaço”, em português arcaico. Paço, quer dizer, palácio. Lugar onde vive a realeza. E Don'Ana era a dama do paço da corte de um maracatu. Era a dama que dança com a calunga, uma boneca que representa a parte mística dos maracatus. E desde sempre foi dama, exclusivamente, do Maracatu Almirante do Forte. Jamais abandonou essa nação, que ela amava com toda a pureza d'alma. E como era puro o coração de Sinhá Nana!

Essa pureza, junto com os severos costumes da época, fez com que ela, ao engravidar do filho único, decidisse sair da casa de meus avós, que, por essa época, já tinham mudado para a casa de Tejipió. Don'Ana, grávida, foi acolhida em casa do fundador do Almirante, Mestre Antonio José da Silva, o pai do nosso Mestre Teté, e nunca mais saiu do convívio dessa família, que a tinha como uma segunda mãe. Casando, o filho único, tentaria morar em casa da nora, ali mesmo, nas cercanias. Mas o seu lar seria, definitivamente, a sede do Almirante do Forte, atual residencia do Mestre Teté, na Estrada do Bongi, 1319.
O tempo passou. Meus avós faleceram. E por décadas não mais tivemos notícias da nossa Tia Nana.
Sede do Maracatu Almirante do Forte
(durante a reforma em 2009)









Reencontrei Dona Ana em meados de 2008, por ocasião em que o Mestre Teté nos convidou para participar do Projeto do Ponto de Cultura Almirante do Forte. Dona Ana, senhora mais que centenária, já não desfilava com o cortejo. Mas estava sempre presente nos ensaios do grupo percussivo. Afinal, ela morava ali mesmo, na sede do Almirante. Quem não há de lembrar daquela sorridente velhinha, olhinhos apertados, a dançar, miudinho, num recanto da sala principal?

O maracatu era o destino de Don'Ana. Não tinha mais notícias do filho, que fora morar no interior, e nunca mais veio visitá-la. Sem outros parentes, a sua família era a nação Almirante. E ali viveu cercada de carinho e de cuidados, por quase 60 anos.
Mestre Teté, ladeado por Dona Ana (de lenço azul)
e Dona Josefa, sua genitora, na sede do Almirante



Hoje, na pátria espiritual, sei que Don'Ana, com aquela simplicidade, contempla o seu povo, a sua nação, uma das nações mais tradicionais de Pernambuco, com a certeza que a sua gente vai segurar no leme com fé e fazer o Maracatu Nação Almirante do Forte navegar para muitas vitórias, nesse oceano bravio, que é a nossa cultura popular.




Até um dia, Sinhá Nana!
Que a tua energia esteja sempre com nossa Nação!


Ana Carmelita Teodoro
24/05/1906 - 23/04/2013