"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







domingo, 13 de fevereiro de 2011

O Frevo de Bloco - por Júlio Vila Nova


Bloco Carnavalesco Lírico Cordas e Retalhos



















O Frevo-de-Bloco


O Frevo-de-Bloco é a música das agremiações tradicionalmente denominadas “Blocos Carnavalescos Mistos”, cujo aparecimento no cenário do carnaval pernambucano registra um interessante dado sociológico: o início da efetiva participação da mulher (sobretudo da classe média) na folia de rua do Recife.

A tendência atual, porém, é a de se adotar a denominação “Blocos Carnavalescos Líricos”, que foi inscrita pela primeira vez num flabelo (o abre-alas do bloco) pelo Cordas e Retalhos, conforme assinalamos em Bloco Lírico, artigo publicado na imprensa em 24/02/2001. Sobre os blocos, já afirmou Leonardo Dantas que é onde está “a melhor parte da poesia do carnaval pernambucano” (1998:32).

Resultado de influências como as manifestações natalinas do Pastoril e dos Ranchos de Reis, além da música dos saraus e serenatas promovidos pelas famílias dos bairros de São José, Santo Antônio e Boa Vista, em princípios do século XX, o Frevo-de-Bloco configurou-se como música de caráter sentimental, profundamente lírico. Daí a pertinência do nome assumido pelos blocos, bem a propósito de uma necessária releitura desse gênero que é freqüentemente tomado como monocórdio, baseado apenas no tema da saudade, como via de regra é abordado na imprensa.

Uma discussão interessante sobre a importância da saudade e a recorrência do tema saudosismo no Frevo-de-Bloco é apresentada por Amílcar Bezerra e Lucas Victor, no excelente Evoluções! Histórias de bloco e de Saudade (2006). Eles analisam os significados que a saudade assume ao longo da evolução do Frevo-de-Bloco, chegando à conclusão de que “saudade, carnaval e identidade são inseparáveis” (2006:102). Isso nos parece muito importante para a compreensão de que os blocos líricos e o Frevo-de-Bloco são valiosos porque constituem traços marcantes de nossa identidade. O bloco não é apenas uma “manifestação propositadamente passadista” (Teles 2000:51), mas é um espaço de convivência humana marcado pela arte e pela defesa de uma tradição que se renova e se reconstrói a cada carnaval. Essa tradição, reinaugurada a partir dos anos 70 do século XX pelo Bloco da Saudade, ganha novas cores e novos nomes a cada ano.

De fato, uma olhada mais atenta às letras do Frevo-de-Bloco revela não apenas a saudade antecipada, pelo carnaval que vai acabar (sobretudo nas marchas-regresso, cantadas pelos blocos em sua despedida da folia); ou a saudade de uma época passada, como nos versos de Evocação nº 1 (Nelson Ferreira) ou Relembrando o Passado (João Santiago), ambas gravadas na segunda metade dos anos 50, quando grande parte dos blocos da primeira geração já havia desaparecido. Observa-se também a elaboração de um discurso pautado pela necessidade de enaltecer e exaltar valores. Verificamos então que o Frevo-de-Bloco cada vez mais tem se construído discursivamente como uma grande propaganda, tendo como objetos a cidade (Recife, Olinda e outras), o carnaval ou as próprias agremiações. Com base no discurso persuasivo, busca-se a adesão do ouvinte/leitor, através do emprego de substantivos, adjetivos e verbos que ressaltam qualidades. Os exemplos são muitos, e podem ser encontrados no repertório de quase todos os blocos:

“O Cordas e Retalhos é assim /(...)/
reúne foliões, espalha alegria/
evoluindo com graça e harmonia”
(de Airton, Leila e Eliane Chaves)


“Vitória-Régia (...)/
És o poema, o tema e a lira /
E a flor que inspira nosso carnaval”
(Romero Amorim e Getúlio Cavalcanti)


“Em plena folia querida /
Rebeldes é o bloco que não tem rival”
(Edgard Moraes)


“Vem conhecer o que é harmonia nesta canção /
O Inocentes apresenta um lindo panorama de folião”
(Luiz de França)


“Recife, cidade do Frevo,
De blocos afamados e maracatus,
Cidade que a todos encanta
Tu és a Veneza do meu Brasil”
(José Moraes)


O tempo empregado é o presente, e muitos exemplos caracterizam a função conativa (ou apelativa) da linguagem, quando a ação verbal é orientada ao destinatário na forma de uma exortação, chamamento ou evocação:



“Vem, vem, vem folião
vem que o Recife te espera”
(José Moraes)


“Não deixem Batutas morrer”
(Álvaro Alvim)


“Acorda que chegou a hora /
vamos cair na folia”
(João Santiago).

Trata-se aqui de suscitar uma nova leitura sobre esse gênero musical às vezes estigmatizado como algo exclusivo de foliões mais velhos, uma visão distorcida e até preconceituosa, que reproduz o etarismo (preconceito contra pessoas de idade avançada). A respeito do lirismo que identifica os blocos e sua música, já se afirmou, inclusive, por absurdo que pareça, que ele seria o “culpado” por uma suposta estagnação do Frevo, tal como se publicou a propósito da crítica a um dos CDs da série Recife Frevoé, lançado pela Prefeitura do Recife em 1999:


“Ouvindo a parte dos compositores novos (depois de um concurso promovido pela PCR), dá pra arriscar mais um motivo que explica a falta de inovação do frevo. Os novos frevistas herdaram o lirismo dos antigos.” (Diário de Pernambuco, 20/01/1999) [grifo nosso]


Esse discurso adotado pela imprensa revela o desconhecimento sobre a dinâmica que tem caracterizado a evolução do Frevo-de-Bloco, sobretudo a partir dos anos 90 do século XX, quando o Recife e outras cidades vêem surgir um grande número de agremiações, várias delas registrando sua produção musical (em muitos casos bastante inovadora) em CD e protagonizando momentos de celebração em diversos eventos durante o carnaval e ao longo do ano inteiro.


JULIO VILA NOVA
Autor de Panorama de folião: o carnaval de Pernambuco na voz dos blocos líricos (Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2007)
Professor, Mestre em Lingüística pela UFPE
Presidente do Bloco Carnavalesco Lírico Cordas e Retalhos
juliovilanova@ig.com.br
cordaseretalhos@uol.com.br


Fonte do texto:
Site da Fundaj

Fonte da imagem:
http://cordaseretalhos.zip.net/