"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







sexta-feira, 24 de maio de 2013

RECORDAR É VIVER (breve defesa da evocação)

















Adão, se existiu, só houve um. Ninguém mais pode ser o primeiro homem. Ser adâmico é não ter pretérito. Só presente e futuro. Essa é uma impossibilidade humana. Só Adão não tem passado.   Mito do ser-inaugural, antes dele nada havia a recordar. Pra nós, pobre humanos, a recordação é necessária e vital. Recordar é viver, literalmente.  Digo isso àqueles que teimam em negar o passado, como se sua sombra frondosa não estivesse sobre tudo e todos. Há coisas irremediavelmente feitas desse tecido, que, por mais que queiram alguns, sustém toda a tessitura do presente. Coisas fundantes e vitais, tais como a língua que falamos, as ciências, as artes. Quem há de supor uma língua toda ela feita de elementos do presente? Ou uma ciência que tente se erigir de um zero dos saberes? Há possibilidade da recriação da roda, do plano inclinado, do ponto e da reta?
Por isso, se todos somos feitos de passado, mesmo os que o negam, não há pecado algum em evocar, como não há mal nenhum no futurista. A evocação é a irmã que abre a porta ao vaticínio. E não é por acaso que o poeta já dizia:

“... que as crianças cantem livres sobre os muros 
e ensinem sonho ao que não soube amar sem dor 
e que o passado abra os presentes pro futuro, 
que não dormiu e preparou o amanhecer...” (Taiguara)


sexta-feira, 26 de abril de 2013

MORRE UMA DAMA DA CULTURA DE RAIZ

Pólo Médico da Ilha do Leite
Recife-PE

Quem vê as torres do pólo médico da Ilha do Leite, nem imagina como eram aquelas terras, há algumas décadas. Terras? Ali quase não havia terra. No início do século XX, só se viam pequenos bancos de areia, três pequenas casas de alvenaria e alguns palafitas. Uma dessas casas era do Vovô Luiz. Outra, do meu Tio-avô João, e a terceira de Seu Manuel Teodoro.
No meio dessa pequena povoação de mocambos (mocambo era o nome que na época se dava aos casebres ribeirinhos do Recife), erguia-se a pequena capela de Nossa Senhora da Saúde, que até hoje está lá, resistindo entre os espigões da Praça Miguel de Cervantes. Pois é, o antigo banco de areia hoje é uma grande praça e no seu entorno já não se vê o antigo manguezal. Grandes hospitais invadiram a margem do Rio Capibaribe e a cidade avançou sobre o antigo lugarejo de pescadores, carvoeiros, lavadeiras e outros ofícios da população ribeirinha, de maioria negra. 

Pça Miguel de Cervantes
(com igrejinha da Saúde)

Ali nasceu a nossa Carmelita Deodoro da Silva, nome de batismo, pois, na verdade, ela usava Ana Carmelita Teodoro. O seu pai, Manuel Teodoro, a chamava carinhosamente de “Calimita”...
Nós a conhecemos por Sinhá Nana, em casa de meus avós, quando ali ficou agregada, nos idos de 1960. Recentemente, o povo do Maracatu a conhecia por Don'Ana.


Capela de N. Sra da Saúde
Ilha do Leite - Recife-PE


Logo a família de Don'Ana, a de meus avós e todos os outros moradores seriam expulsos da Ilha do Leite, deslocando-se para a periferia da cidade. Tempos sombrios, em que a política do Estado Novo demolia os mocambos e a chamada Cidade Nova crescia, sob a política higienista da Liga Social contra o Mocambo, sufocando os mais pobres. Esse filme, infelizmente, a gente ainda vê hoje em dia...
Vovô Luiz e vovó Joaninha
(amigos de Don'Ana, desde a Ilha do Leite)
Álbum Família Melo
Don'Ana foi viver com meus avós, (que eram seus vizinhos desde a infância na Ilha), no bairro humilde do Pacheco, zona oeste do Recife. Lembro-me dela em sua azáfama diária: lavava e engomava os paletós de meu avô assoprando as brasas de um pesado ferro de passar. Era uma gigante para trabalhar. Não descansava. E além disso, cuidava com desvelo das crianças da casa. Vez por outra, nos levava ao Grupo Escolar, e apertava bem a nossa mãozinha, com medo de nos perder nas ruas. Era uma cuidadora amorosa e fiel.

Sinhá Nana (com balde na mão)
Álbum Família Melo
(3ª Trav. Estrada do Curado, Tejipió -  Década 1970)

Mas, quando se aproximava o carnaval, Don'Ana sumia. É o maracatu, dizia minha avó. Ela some nos dias que antecedem a festa e só volta na quarta- feira de cinzas. Eu, menino curioso, ficava intrigado com aquilo. Para onde ia a nossa Sinhá Nana?
Menininha
(calunga do Almirante)

Hoje eu sei porque ela sumia. É que ela era uma dama do paço, ou do “paaço”, em português arcaico. Paço, quer dizer, palácio. Lugar onde vive a realeza. E Don'Ana era a dama do paço da corte de um maracatu. Era a dama que dança com a calunga, uma boneca que representa a parte mística dos maracatus. E desde sempre foi dama, exclusivamente, do Maracatu Almirante do Forte. Jamais abandonou essa nação, que ela amava com toda a pureza d'alma. E como era puro o coração de Sinhá Nana!

Essa pureza, junto com os severos costumes da época, fez com que ela, ao engravidar do filho único, decidisse sair da casa de meus avós, que, por essa época, já tinham mudado para a casa de Tejipió. Don'Ana, grávida, foi acolhida em casa do fundador do Almirante, Mestre Antonio José da Silva, o pai do nosso Mestre Teté, e nunca mais saiu do convívio dessa família, que a tinha como uma segunda mãe. Casando, o filho único, tentaria morar em casa da nora, ali mesmo, nas cercanias. Mas o seu lar seria, definitivamente, a sede do Almirante do Forte, atual residencia do Mestre Teté, na Estrada do Bongi, 1319.
O tempo passou. Meus avós faleceram. E por décadas não mais tivemos notícias da nossa Tia Nana.
Sede do Maracatu Almirante do Forte
(durante a reforma em 2009)









Reencontrei Dona Ana em meados de 2008, por ocasião em que o Mestre Teté nos convidou para participar do Projeto do Ponto de Cultura Almirante do Forte. Dona Ana, senhora mais que centenária, já não desfilava com o cortejo. Mas estava sempre presente nos ensaios do grupo percussivo. Afinal, ela morava ali mesmo, na sede do Almirante. Quem não há de lembrar daquela sorridente velhinha, olhinhos apertados, a dançar, miudinho, num recanto da sala principal?

O maracatu era o destino de Don'Ana. Não tinha mais notícias do filho, que fora morar no interior, e nunca mais veio visitá-la. Sem outros parentes, a sua família era a nação Almirante. E ali viveu cercada de carinho e de cuidados, por quase 60 anos.
Mestre Teté, ladeado por Dona Ana (de lenço azul)
e Dona Josefa, sua genitora, na sede do Almirante



Hoje, na pátria espiritual, sei que Don'Ana, com aquela simplicidade, contempla o seu povo, a sua nação, uma das nações mais tradicionais de Pernambuco, com a certeza que a sua gente vai segurar no leme com fé e fazer o Maracatu Nação Almirante do Forte navegar para muitas vitórias, nesse oceano bravio, que é a nossa cultura popular.




Até um dia, Sinhá Nana!
Que a tua energia esteja sempre com nossa Nação!


Ana Carmelita Teodoro
24/05/1906 - 23/04/2013





domingo, 17 de março de 2013

JORNADAS CARNAVALÍRICAS

Orquestra de Batutas de São José


 Créditos da imagem:




Estava eu no encontro de blocos Eu Quero é Mais, naquele fatídico 16/02/2013, dia em que o nosso músico Luquinhas Lyra foi baleado covardemente, na frente do Estádio do Náutico, (hoje, faz 30 dias, ele já saiu do coma e está em franca recuperação)... 

Bem... mas o que quero mesmo registrar é algo muito constrangedor que, infelizmente, meus pobres ouvidos foram obrigados a ouvir, no trajeto dos blocos líricos. Estávamos na Prudente de Morais, uma das famosas ladeiras de Olinda, quando cruzamos com o afamado Bloco Batutas de São José, do inolvidável Maestro João Santiago, que, no início do século XX, compôs Sabe lá o que é isso, a mais gostosa marcha de blocos do nosso carnaval:

“...sem você, meu amor,
Não há carnaval...
Vamos cair no passo
E a vida gozar!”

Pois bem, eu, folião de carteirinha e fã do Batutas, fiz a tradicional saudação:

Não deixem morrer Batutas!  

E, logo em seguida, escuto uma bela e firme voz feminina gritar, bem atrás de mim:

Já morreu faz tempo!

Voltei os olhos, curioso, e vi uma bela pierrete, portando um belíssimo flabelo, à frente de um bando de outras pierretes, lindamente trajadas. Era flabelista, a moça de cuja boca de carmim eu ouvi aquela verdadeira blasfêmia contra o bloco Batutas de São José, deca-campeão dos carnavais na década de 1960. 

Ah, a década de 60...
Batutas, por essa época, dominava o carnaval, seguido pelos Banhistas do Pina, outro grande campeão e por outras belíssimas agremiações, que eram a alegria dos amantes dos blocos líricos, como eu.

Não,senhorita! Não morreu, o grande Batutas. Jamais morrerá!  
Ele está na nossa alma, no sangue dos pernambucanos e foliões de todas as partes. 

E é por isso que lutamos, nós compositores dos blocos anônimos, os que têm pouca mídia e, portanto, pouca ajuda da Prefeitura. Lutamos pela preservação dos blocos mais humildes, que já foram a fina flor desse carnaval lírico.
Dia desses, vi Pirilampos de Tejipió, que evoluía, humildemente, no Pólo da Várzea. Meu coração ficou apertado ao ver o sofrível aspecto daquele bloco afamado, que foi o xodó do grande Guilherme de Araújo, e que sempre fez bonito nos carnavais de outrora. Não é à toa que nos versos de um dos mais belos frevos de bloco de todos os tempos, cita-se Guilherme e o seu Pirilampos:

“Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon,
Cadê teus blocos famosos?
Bloco das Flores, Andaluzas, Pirilampos, Apois Fum
Dos carnavais saudosos?”

Pois é, moça, é por eles que lutamos bravamente, que resistimos contra os insensíveis gestores da coisa pública, com honrosas exceções, que nada sabem dos bastidores de luta, dos sacrifícios que se fazem para botar um bloco na rua. E aqui louvamos a resistência dessa nova geração, que gosta do lirismo desses blocos antigos. Por isso, repito:

Não,senhorita! Não morreu, o grande Batutas. Jamais morrerá!  

Para concluir, tenho uma auspiciosa notícia: 

Descobri, em andanças pelo meu querido bairro da Várzea, que os blocos sem mídia estão articulando encontros na periferia da cidade, verdadeiras jornadas carnavalescas, em que seus cordões de pastorinhas, suas orquestras dedilhadas em cordas e palhetas, seus seresteiros e poetas estarão empunhando o flabelo da resistência popular pela nossa cultura. Exultemos! Um grupo solidário de foliões está conspirando em prol da alegria! 

Ainda ontem, à sombra de um frondoso jambeiro varzeano, centenário como tudo naquele arrabalde, ouvi palavras alvissareiras de uma das flores do Capibaribe, (que, por hora, não direi o nome, mas quem é de bloco lírico, sabe bem de quem falo). Trouxe-me, aquela flor, palavras inteligentes e decididas, que alegraram e muito o meu coração carnavalesco. É que nós, os blocos enraizados nos subúrbios do Recife e cidades do entorno, a partir de junho, talvez antes, estaremos trocando visitas uns aos outros, em festivas caminhadas líricas, pelas ruas dos nossos bairros, subvertendo, com alegria, o descaso dos nossos gestores, e produzindo cultura pelos nossos próprios meios, mesmo sem mídia, sem subvenção, que isso nunca foi obstáculo para os verdadeiros foliões.

Avante, seresteiros, avante, pastorinhas! O verdadeiro carnaval lírico está de volta aos lugares de onde saiu: os subúrbios históricos do Recife.  
Salve a periferia, salve os blocos líricos, salve o movimento de cultura popular, que nunca morreu, nem nunca morrerá. 

Batutas tem um passado de lutas.
Salve Batutas, Batutas vai vencer!

Finalmente, e por sabermos que os blocos nasceram também do ciclo natalino, oriundos das jornadas dos ranchos e pastoris, que se estendiam do dia dos Reis até o carnaval (vide Prof.  Júlio Vila Nova) sugiro o nome de Jornadas Carnavalíricas, para esses encontros e caminhadas suburbanas dos nossos alegres bandos, que ora  anunciam essa tomada de atitude pelo lirismo do carnaval dos subúrbios.

Luiz Eurico de Melo Neto
(um registro para a história)





quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

AURORA DE ABELARDO, DA HORA, DA ARTE, DA VIDA!


Esse jovem quase centenário que dança, que brinca e que faz mesuras para as pastoras dos blocos é um dos maiores artistas desse país. Trata-se do escultor Abelardo da Hora, que honrou o Aurora dos Carnavais com sua presença ilustre. O carnaval agradece!

Abaixo, um pouco da sua arte (em imagens do google):





Curiosidades: Abelardo e a Várzea do Capibaribe

Em 1942, quando à frente do Diretório Acadêmico de Belas Artes, Abelardo comandava um grupo de alunos que pintava e desenhava paisagens nas matas do bairro da Várzea, quando seu trabalho chamou a atenção do industrial Ricardo Brennand que o contratou. Trabalhou para o industrial de 1943 até 1945, realizando vários trabalhos em cerâmica, jarros florais e pratos com motivos regionais em relevo e em terracota.
Nessa época, Francisco Brennand, filho de Ricardo Brennand, vendo-o trabalhar se interessou em fazer as primeiras tentativas de pintar cerâmica e desenhar.

AS FLORES DO CAPIBARIBE EN/CANTAM NA AURORA



Ao pé da rampa do palco, as florinhas da Várzea do Capibaribe
entoam as canções mais belas do carnaval.

 
Era a tarde do dia 05 de janeiro de 2012 e estava por começar o 13º Aurora dos Carnavais, o encontro de blocos líricos que abre o carnaval do Recife. A festa tão esperada iria começar. O vermelho das nossas fantasias esquentava a concentração. O diferencial de nosso grupo é o entusiasmo. Nenhum grupo é tão animado, tão cheio de energia, tão juvenil.

E esse é o 3º ano do Flores do Capibaribe no palco da rua da Aurora. Cantaremos 3 músicas inéditas, e homenagearemos o poeta Romero Amorim, idealizador do evento e um de nossos padrinhos. Por isso o cordão lírico mais animado da cidade estava radiante. Ao pé da rampa do palco, já entoávamos as nossas belas  e inéditas canções.

Evoé! Flores do Capibaribe!
Obrigado, padrinhos Wenna e Beto Fantini!
Parabéns, poeta Romero Amorim!








Fonte desta imagem:
Diário de Pernambuco
http://www.joaoalberto.com/2012/02/06/a-tradicional-aurora-dos-carnavais/

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

FLORES DO CAPIBARIBE - revivendo os cordões líricos do passado



Foi na segunda década do século XX que o carnaval recifense, como descreve Leonardo Dantas Silva, veio a "se abrilhantar de emoção e cores que somente os blocos carnavalescos, aos quais chamamos “blocos líricos”, puderam proporcionar ao folião.


Ainda é assim no bairro da Várzea, no Recife

Tudo é alegria!


As famílias se reunem na vizinhança


As mamães trazem as filhotas.


As mocinhas recebem cuidados maternais.



Diz ainda o historiador Dantas Silva, que
aqueles alegres cortejos surgiram "a partir dos cordões de isolamento onde podiam desfilar as senhoras e senhoritas da época, que já cultivavam a brincadeira dos pastoris e presépios".
Nesses brincantes, ainda segundo Dantas, "as mulheres cantavam e os homens tocavam instrumentos de pau-e-corda, como sejam os bandolins, violões, pandeiros, admitindo, quando muito, além disso, uma gaita de sopro."



A ruazinhas varzeanas enchem-se de cores e de flores.
 




O flabelo atravessa o bairro, a caminho da folia.


Assim como em 1920, as senhorinhas não frequentavam o carnaval dos clubes pedestres, onde os capoeiras dançavam o frevo-rasgado, os grupos de foliões e seresteiros de hoje em dia formaram os blocos líricos nos bairros, para que as famílias possam reviver aqueles felizes carnavais.

E todos embarcam para a festança.


Os versos do "Último Regresso", que Getúlio Cavalcanti compôs para o Bloco Banhistas do Pina, descrevem o lirismo desses cordões suburbanos:

"É lindo ver
O dia amanhecer
Com violões e pastorinhas mil,
Dizendo bem
Que o Recife tem
O carnaval melhor do meu Brasil!"





Brincar: isso é o que move crianças e adultos.






E a velha rua da Aurora é tomada pelo alegre bando.





Evoé! Flores do Capibaribe!


Legítimo representante dos cordões líricos de bairro!





Fonte da imagem final:


http://www.fotoarena.com.br/detalhes/foto/id/232395?ide=8208







domingo, 5 de fevereiro de 2012

TODO O LIRISMO DE UM BLOCO...


...no bandolim do Maestro Marco César:




É hoje!
Hoje estaremos no Aurora dos Carnavais!
Mais tarde mostro um pouco da festa por aqui.
Evoé!