"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







domingo, 28 de dezembro de 2008

Feliz Ano Novo!!!



Nós que fazemos o Sítio D’Olinda desejamos aos nossos Amigos um


FELIZ 2009!!!

E que o Ano que está para nascer seja repleto de muita Luz, Paz, Saúde, Amor, Fé, Benção, Prosperidade, Sucesso, Pureza, Amizade, União, Força, Harmonia, Igualdade, Benevolência, Perdão, Conquistas, Sonhos, Felicidade, Realizações, Esperança, Força, Amigos, Liberdade, Desafios, Solidariedade, Estima, Confraternização, Sinceridade, Respeito, Alegrias, Humildade, Gratidão, Paz de Espírito, Equilíbrio, Paciência, Sabedoria...


Que Deus Ilumine e Abençoe a Todos Vocês e Seus Familiares!!


terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Brincantes III

Espetáculo popular (auto ou drama pastorial) pertencente ao ciclo natalino, é apresentado, ao ar livre, no período entre meados de novembro e o dia de reis, a 06 de janeiro. O espetáculo é representado com o público de pé, formando um círculo. O boi, personagem principal, é feito de uma armação de madeira coberta de pano colorido e enfeitado. Uma pessoa fica dentro do boi, pulando, dançando e avançando sobre o público. Durante a encenação o boi, morre e ressuscita. A interjeição "bumba" significa "pancada, estouro, queda", de forma que o termo que denomina o espetáculo equivale a "bate, chifra, meu boi".

Os personagens do espetáculo são classificados em três categorias: humanos (Os femininos são representados por homens travestidos. O Capitão é o comandante do espetáculo. Há também Mateus e Catirina, personagens bastante conhecidos que apresentam os bichos, cantam e dançam de forma engraçada, divertindo muito o público. Catirina é uma negra, muito desinibida que em alguns bumbas é a mulher de Mateus. Fazem parte ainda do elenco: Bastião, a pastorinha, a dona do boi, o padre, o doutor, o sacristão, Mané Gostoso, o Fanfarrão); animais (Burrinha, Ema, Cavalo-Marinho, Boi, a cobra, o pinica-pau); e fantásticos, entre estes o Diabo, o Caipora, o Morto-Carregando-o-Vivo, Babau, e o Jaraguá.

O enredo é que não muda em todos os bumbas-meu-boi. O boi da pastorinha se perde e ela sai a sua procura pelos arredores e vai encontrando os vários personagens. No final o boi é sempre morto e ressuscitado, e com a morte dele se canta a seguinte lamentação, muito conhecida de todos:
O meu boi morreu
Que será de mim?
Manda buscar outro
Ô maninha, lá no Piauí



domingo, 21 de dezembro de 2008

Olinda para o Mundo


Não poderia deixar de registrar:

O diretor Guel Arraes chega com sua trupe a Pernambuco em janeiro para iniciar, no dia 20, as filmagens em Olinda da adaptação para o cinema da peça teatral O bem-amado.

Inicialmente, Guel Arraes havia escolhido a Paraíba, onde realizou Romance, sua obra mais recente para o cinema. Mas a situação de instabilidade política do atual governador Cassio Cunha Lima, que pode ter o mandato cassado, levou a produção a escolher como cenário para as filmagens o Estado de Pernambuco, que é governado por Eduardo Campos, sobrinho do cineasta.”


Maiores informações no JC (Jornal do Commercio).

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Brincantes II

O Cavalo Marinho é uma dança cheia de detalhes (cheia de melindres), porém bem menos popular que o maracatu.
Ao longo dos anos tem sido perceptivel que o ‘desaparecendo’ Cavalo Marinho (assim como o Pastoril).



As apresentaçãos estão se tornando cada vez mais raras. Algumas escolas procuram manter a tradição do Ciclo Natalino e fazem apresentações destes Brincantes nas festas de final de ano, o que é ótimo para a cultura popular pernambucana e para nossas crianças que cada dia que passa se distanciam do popular e se tornam mais próximas da modernidade (computador, video games, cariinhos de controle remoto...).

Mas não é apenas por estar ‘fora da moda’ que o cavalo-marinho tem mais dificuldades em se manter. Algumas características do folguedo também interferem nisso: a ‘orquestra’ apesar de não precisar de muitos músicos utiliza instrumentos como a rabeca, ganzá, pandeiro e reco-reco que são instrumentos que não chamam tanto a atenção dos jovens como os bombos, tarol, alfaia e outros instrumentos de percussão.

Outro fator que influencia também é a época ou ciclo que acontecem as apresentações, de julho ao Dia de Reis (principalmente na época do Natal), enquanto os maracatus são apresentados o ano inteiro.

Sem falar que a dança exige muito das pessoas, já que, é bem diferente do maracatu. No Cavalo Marinho os passos são rasteiros para levantar poeira e intercalados com saltos rápidos e vigorosos. As sambadas varam a noite, uma apresentação completa dura nada menos que oito horas, sem intervalos. A apresentação é intercalada com a participação do público e de todos os participantes e a entrada dos personagens. Geralmente, 21 componentes são o suficiente para encarnar todos os personagens.



O Cavalo Marinho, como o Bumba-meu-boi, é uma aglutinação dos Reisados. Ao longo do espetáculo são agrupados cantos, loas, personagens e parte do Boi de Reis. É um verdadeiro auto popular que fala da vida passada e presente do povo. Uma tradição popular que vem se mantendo viva, principalmente durante o ciclo natalino. Não há como ficar indiferente à apresentação desta brincadeira de origem portuguesa e que fincou suas raízes nos costumes do povo da Zona Norte de Pernambuco. Tudo nos leva a achar maravilhoso esta manifestação do folclore pernambucano, desde a música com o seu som característico produzida pelos tocadores da rabeca, pandeiro, ganzá e reco-reco, que se parece muito com as toadas árabes. Os seus divertidos diálogos, suas danças parecem fazer parte de uma espécie de Teatro Mágico.

A história do Cavalo Marinho basicamente é a seguinte: os personagens Mateus e Bastião, que participam do início ao fim da brincadeira, são dois negros amigos, que dividem a mesma mulher, a Catirina, e estão à procura de emprego. Eles são contratados para tomar conta da festa. O espetáculo é costurado ou coordenado pelo Capitão, de quem se origina o nome do folguedo. O nome do capitão é Marinho e ele chega montado em seu cavalo, daí a história dá seu prosseguimento até o momento final, quando o boi é dividido entre os participantes numa grande farra. Ao todo são 76 personagens (humanos e animais), representados em 63 atos.

O espetáculo tem início quando os toadeiros tomam assento no "banco" (orquestra) e saúdam os donos do terreiro e o público. Os primeiros personagens a surgir são Bastião e Mateus, após eles, começa uma sucessão de personagens que vão se apresentando perante o público, que também participa dos diálogos e brincadeiras.

Entre os personagens ou figuras mais participativas do Cavalo Marinho estão os galantes e damas (que representam a elite que vem abrilhantar a festa), o Capitão (dono da terra ou chefe político da área), o Soldado (elemento opressor a serviço do poder), o Caboclo de Arubá ( entidade sobrenatural que canta todas as linhas de Jurema) e o Boi (presença constante na vida do homem do campo). São 6 os galantes e duas as damas.

Antigamente, como só homens dançavam o folguedo, eles se travestiam para representar estes personagens, hoje as mulheres conquistaram espaço tanto na brincadeira como na orquestra. As roupas são enfeitadas com fitas e espelhos e os chapéus têm abas horizontais adornadas com pingentes dourados.

O Capitão ou Mestre é o empresário do folguedo. Usando um apito ele marca o ritmo da música, ordena o início e o término da atuação dos figurantes. Em algumas partes da brincadeira conduz a armação em forma de cavalo e ostenta dragonas no ombro. O Soldado, apesar de usar boné caracterizando um militar, tem no seu traje uma mistura de farda com roupa civil.O Caboclo de Arubá usa calça comum, sem camisa, cocar de pena e óculos escuros. Já o boi é uma armação de tábua ou bambu coberto de tecido pintado com uma caveira de boi no lugar da cabeça que é revestida de papel e os seus chifres são adornados com fitas multicoloridas.

Outros personagens, não menos importantes, surgem no decorrer da brincadeira, contribuindo para o desenrolar do enredo, pontuado pelas toadas cantadas pelos ocupantes dos bancos. Cada integrante, interpreta três ou quatro personagens já que o total de figuras é de 76.
Nos versos que surgem no correr da brincadeira, foi incorporado um palavreado típico do homem da região. Expressões como REAR (ir embora), VAGEM ( lugar onde o boi é amarrado para comer), BARRER (varrer) e SAMBADA (festa, dança). O aspecto religioso está sempre presente no folguedo, no qual são feitas diversas saudações aos Santos e a Deus. O Real, o Fantástico e o Imaginário estão presentes em todo o espetáculo do Cavalo Marinho.


Bem, acho que por isso eu só conhecia a 1ª cena. Não fazia idéia que era assim, tão cheio de detalhes...





CENA I(O Cavalo marinho a dançar e o Coro)

Coro:

Cavalo-marinho
Vem se apresentar,
A pedir licença
Para dançar.
Cavalo-marinho,
Por tua atenção
Faz uma mesura
A seu capitão.
Cavala-marinho
Dança muito bem;
Pode-se chamar
Maricas meu bem.
Cavalo-marinho
Dança bem baiano;
Bem parece ser
Um pernambucano.
Cavalo-marinho
Vai para a escola
Aprender a ler
E a tocar viola.
Cavalo-marinho
Sabe conviver;
Dança o teu balanço
Que eu quero ver.
Cavalo-marinho,
Dança no terreiro;
Que o dono da casa
Tem muito dinheiro.
Cavalo marinho,
Dança na calçada;
Que o dono da casa
Tem galinha assada.
Cavalo-marinho,
Você já dançou:
Mas porém lá vai,
Tome que eu lhe dou.
Cavalo-marinho,
Vamo-nos embora;
Faze uma mesura
Á tua senhora.
Cavalo-marinho,
Por tua mercê,
Manda vir o boi
Para o povo ver.









Nota da autora:
Hahahaha...

Estou sintonizada com a arte (digo isso porque o post de hoje não seria sobre Cavalo Marinho, o post sobre Cavalo Marinho seria o 3º)...

E ao ler o jornal vi um anuncio sobre a ‘Conexão Cavalo Marinho’.

É um evento que vai tem inicio em 18/12 e encerra no dia 21/12. São 8 grupos de Cavalo Marinho, 6 espetáculos de dança e teatro. As apresentações acontecerão no Teatro Hermilo Borba Filho, às 20h. A entrada é franca e as senhas começam a ser distribuídas às 19h.
o mais legal é que entre os grupos que se apresentarão tem um grupo de Olinda, o Cavalo MArinho Boi Matuto, que se apresenta no primeiro dia do evento.
Maiores informações é só clicar na imagem abaixo:

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Brincantes I

O Natal está chegando, é hora de falar sobre os Brincantes Natalinos.

E hoje começo uma serie de posts falando sobre os
brincantes natalinos: Pastoril, Cavalo-Marinho, Bumba-Meu-Boi, Reisado, Fandango, Queima da Lapinha.

O mais conhecido em Recife e Olinda é o Pastoril, mas atualmente não é mais tão comum ver apresentações, cada vez mais raras, mas as escolas e prefeituras ainda tentam resgatar a tradição natalina.

Existem dois tipos de Pastoril, o Religioso e o Profano
(confesso que conheci primeiro o profano).

O Pastoril é um folguedo popular dramático de origem européia, representado entre o Natal e a Festa de Reis (05 de janeiro), em vários Estados do Nordeste brasileiro. São cordões com diversos personagens, entre as quais as pastoras ou pastorinhas, que cantam e tocam maracá. De origem religiosa, também é denominado Presépio.

Segundo Pereira da Costa, o uso de Presépios em Portugal teve início no Convento das Freiras do Salvador, em Lisboa, em 1391, levantando-se no meio do templo uma armação representando o Estábulo de Belém, com figuras que representavam a cena do nascimento de Jesus.

Depois, já no século XVI, foi o assunto dramatizado, teve entrada no teatro e é talvez daí que vem o auto hierático português, de tão variados assuntos.

No seu Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo assim define o Pastoril: cantos, louvações, loas, entoadas diante do presépio na noite do Natal, aguardando-se a missa da meia-noite. Representavam a visita dos pastores ao estábulo de Belém, ofertas, louvores, pedidos de bênção.

Os grupos que cantavam vestiam de pastores, e ocorria a presença de elementos para uma nota de comicidade, o velho, o vilão, o saloio, o soldado, o marujo, etc. Os pastoris foram evoluindo para os autos, pequeninas peças de sentido apologético, com enredo próprio, divididos em episódios que tomavam a denominação quinhentista de "jornadas" e ainda a mantêm no Nordeste do Brasil.

No Brasil e mais precisamente em Pernambuco, segundo Pereira da Costa, o aparecimento do presépio vem, talvez, dos fins do século XVI, no Convento dos Franciscanos em Olinda, por iniciativa de Frei Gaspar de Santo Antônio, primeiro religioso a receber hábito no Brasil. Já Fernão Cardim, o Jesuíta, nos dá uma indicação em que talvez possamos detectar as origens do Pastoril brasileiro, por conta de uma representação em 1584, no dia 5 de janeiro ou no dia dos Reis, como consta num documento, também citado por Mário de Andrade em Danças Dramáticas do Brasil - 1º Tomo: "Debaixo da ramada se representou pelos índios um diálogo pastoril, em língua brasílica, portuguesa e castelhana, e têm eles muita graça em falar línguas peregrinas, maximé a castelhana. Houve boa música de vozes, flauta, danças, e dali em procissão fomos até a igreja com várias invenções".


O PASTORIL EM PERNAMBUCO

É curioso observar que nos séculos XVII e XVIII, os estudiosos não encontram referências importantes sobre o pastoril na Colônia, mas já no século XIX, concordam que houve abundância dos bailes pastoris, principalmente no Nordeste e notadamente, em Pernambuco e na Bahia, com publicações de textos, a exemplo de Sylvio Romero e Pereira da Costa.Para Mário de Andrade, é curioso observar que essa dança dramática não teve uma repercussão nacional (apenas no período oitocentista o pastoril teve seu brilho e apogeu), diferente dos presépios que se tornaram tradição em todo o país, talvez, como ele afirma, por ser um fenômeno de imposição burguesa. Assim no Recife e nas outras cidades do Nordeste, em frente aos presépios ou lapinhas, as pastoras cantavam loas, tornando o presépio não só forma animada, mas dramática, ao lado da representação estática da Natividade. Fica evidente que a dramatização do tema permitia uma fácil compreensão em torno do episódio do nascimento do Cristo. Desta forma, a cena tomava vida, com a introdução de recursos visuais e sonoros. Para Hermilo Borba Filho, essa dramatização traz a influência do auto sacramental espanhol, na sua forma literária.


PROFANO- RELIGIOSO

Ao enveredar por outros caminhos, o Auto Pastoril transforma-se em sincretismo profano-religioso, tornando-se, muitas vezes, em profano, com suas características que ressaltam a licenciosidade do Velho do Pastoril e a sensualidade das Pastoras.

No Recife, por volta de 1840, começaram a aparecer sociedades com o fim de dirigir com solenidade, brilhantismo e decência o natalício do Messias, por meio de representações teatrais, tais como a Sociedade Natalense e a Sociedade Nova Pastoril, conforme registra Pereira da Costa. Com a formação dessas sociedades, os pastoris passaram a ter uma forma literária, de modo que transformavam-se em espetáculos, contando com poetas, escritores e artistas que criavam letras e músicas. Dentre tantos que contribuíram nesse período, há que se destacar os irmãos Valença - João e Raul que apresentavam, quase todos os anos, um Presépio, assemelhado com os autos hieráticos oitocentistas. Ascenso Ferreira revela que, no Recife, o avô de João e Raul Valença encenou, pela primeira vez, um Presépio em 1865, no auge da Guerra do Paraguai. A tradição foi mantida até 1900 pelo pai dos dois irmãos compositores já citados, que após alguns anos de interrupção, assumiram a volta ao tablado do Presépio, no Sítio Valença, localizado entre a Madalena e o Zumbi, com as mesmas características de auto sacramental. Os personagens utilizados pelos irmãos Valença eram: Culpa, Libertina, Religião, Graça, Gabriel, Pastoras, Lusbel, Mestra, Diana, Contra-mestra, Eva, Argemiro, Monge, Flora, Herodes, Centurião e Cingo.

Fica claro também que, enquanto as sociedades tentavam manter um controle moral e religioso, evitando enxertos de cenas burlescas e licenciosas, os Pastoris ditos profanos abundavam nas pontas de ruas, alterados em suas formas originais, contando com a participação dos espectadores na animação das cenas, fugindo do enredo e da temática e, como diziam os mais arredios, irreverentes, licenciosos e imorais.

Os esforços das sociedades para manterem a seriedade do ato sagrado que se pretendia reproduzir, repercutia também na imprensa: os jornais da época censuravam o ar indecente de que se revestiam certos presépios, com opiniões que indicavam que a Polícia devia impedir as apresentações, no zelo pela moral pública e pelos bons costumes. Há registros, de 1840, dessas denúncias, por exemplo, no jornal O Carapuceiro, do Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama, conhecido como o Padre Carapuceiro e por suas críticas de costumes na primeira metade do século XIX.

É certo que o Pastoril teve seu grande momento nos primeiros vinte e cinco anos desse século, sendo representado por iniciativa de leigos, mas sem perder sua ligação com festas religiosas, principalmente, como já foi dito, do Ciclo Natalino. Por outro lado, os Presépios sempre foram encenados por jovens e meninas de família, que paramentadas de pastoras angariavam prendas, como flores, bolos, perfumes, frutas, que se transformavam em prêmios dos leilões realizados em benefícios de instituições religiosas ou obras de caridade.A partir de então os pastoris se espalharam pelos bairros atraindo sempre um público certo e participativo e, evidentemente que, com mais licenciosidade, atraíam os homens. Dentro da estrutura do auto, as pastoras com seus pandeiros ou maracás, cantam e dançam ao som da orquestra de pau e corda mas sua formação dependia dos recursos financeiros do grupo. Algumas traziam pistão, trombone, clarinete, bombo. Outras se apresentavam com violões, cavaquinhos, com um instrumento de sopro solista.

No meio dos dois cordões, cada um comandado pela Mestra (cordão azul) e Contramestra (cordão encarnado), encontramos a Diana, vestida metade azul, metade encarnado. O Velho, conhecido como Bedegueba, mas que toma diversos apelidos é uma espécie de bufão, de palhaço de circo, que comanda as jornadas (cantos das pastoras) e se esparrama em piadas, numa atuação que ressalta o histrionismo, a improvisação. Seus diálogos com as pastoras são cheios de duplo sentido e, com o público, puxa discussão, brincadeiras, faz trejeitos e canta canções adaptadas às suas necessidades. Dentre os outros personagens do pastoril profano, também desfilavam o Anjo a Estrela do Norte, o Cruzeiro do Sul, a Cigana, além de outras figuras que aparecem ocasionalmente por influência do local, da região.Hoje o pastoril perdeu em sentido hierático e lírico, mas transformou-se num gênero popular de representação, diferenciado e que atingiu sua própria forma. Não é questão de involução, mas de interferência dos artistas populares que com os seus espíritos inquietos e brincantes conduzem esses folguedos.


"Nós somos do encarnado
A cor do nosso coração
Os nossos partidários
Quando entramos em cena
Vibram todos de emoção

Nós somos do azul
A cor do nosso céu de anil
Os nossos partidários
Quando entramos em cena
A todos sorriso mil. "

Religioso e Profano

PS:
Os destaques entre as festividades natalinas em Olinda vão para a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim (1758) e para o Palácio dos Governadores onde ocorre o "Natal no Palácio", com apresentação de Auto de Natal, pastoris, danças folclóricas e corais.

PS¹:
Este ano uma exposição (Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco – MAC) de Presépios abriu o Ciclo Natalino de Olinda, no dia 09/12. A mostra reúne peças da coleção particular da atriz pernambucana Geninha da Rosa Borges, a coleção completa conta com quase 400 presépios. No MAC, estará exposta parte desse acervo, do qual fazem parte obras de artesãos de Caruaru, Tracunhaém e Petrolina, além de trabalhos oriundos de países como Japão, Tailândia, Estados Unidos, França e China.

PS²: Ao Clicarem nas imagens serão direcionados ao site de onde foram retiradas.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Estou chegando...


Olá, permitam que me apresente:

Meu nome é Cecília, tenho 26 anos, sou natural de Recife (nascida e criada), sou uma Canceriana convicta com Ascendente em Peixes e Lua em Libra (sabe lá o que isso quer dizer, mas pelo que li é uma combinação e tanto...).

Sou chocólatra, não recuso um sorvete, me desmancho por doce, adoro ouvir música e escrever, mas meus escritos saem no improviso, na hora da inspiração, no memento em que o coração bate forte, na hora da emoção, quase sem razão...

Minha família é meu alicerce, meu porto seguro, minha mãe minha é melhor amiga, tenho dois lindos sobrinhos (João de 6 anos e Matheus de 5 anos) e um afilhado maravilhoso (Nuno de 9 anos).

Tenho poucos amigos, falo naqueles amigos de toda hora, inclusive, ou principalmente, das horas difíceis, tenho muitos amigos com quem me divirto, alguns chamam de amigos de farra, falo pouco, escuto mais, sou chata, implicante, arengueira, impulsiva, emotiva, chorona, amiga, dona de uma personalidade forte e marcante, sincera, orgulhosa...

Gosto muito de viajar, passear pelo Recife e por Olinda, adoro ir à praia, seja durante o dia ou à noite, gosto de dançar, sair com os amigos, ir ao cinema e ao teatro...

Vocês devem está se perguntando o que estou fazendo por aqui, né?

Bem, é que recebi um convite do Carlinhos para contribuir com o blog.
O convite foi para falar dos folguedos de Natal de Olinda, mas como ainda não reuni todo material que acredito ser necessário vou começando com uma breve apresentação sobre mim e a divulgação de um projeto muito interessante que tem o nome de: Olinda Arte em Toda Parte’.

Este evento que movimenta as ladeiras de Olinda está na sua oitava edição esta celebrando mais um título concedido pela UNESCO à cidade que é Patrimônio Cultural da Humanidade e primeira Capital Brasileira da Cultura: o Título de Memória do Mundo.

O evento foi ‘aberto’ no dia 04/12 no Mercado da Ribeira e será encerrado no dia 14/12, além das apresentações culturais o público poderá visitar os 95 ateliês que abriram as portas para expor o trabalho de 311 artistas e artesãos, que moram na cidade ou a habitam temporariamente e também poderão apreciar os pratos especiais que chefes de vinte restaurantes da Cidade Alta estão preparando para servir durante o evento.

Este ano a grande novidade é o leilão beneficente ‘Ajudar É o Bicho’, que será realizado no sábado, dia 13, às 9h, no Convento de São Francisco. Cerca de 40 artistas participam da iniciativa, organizada pela psicóloga Sandra Valéria em parceria com o movimento Prudente Arte o Ano Inteiro. O dinheiro arrecadado pelas obras vendidas será destinado a ações em prol dos animais de rua do Sítio Histórico.


Divirtam-se!!!!

Participante do Olinda Arte em Toda Parte 2007.


PS:
Todas as imagens foram retiradas da internet.
Ao clicarem nas imagens serão direcionados ao site de onde foram retiradas.

sábado, 15 de novembro de 2008

PSALMO Nº 7 - RESPONSÓRIO





(Chantre)

Às tuas portas
aquietarei minh'alma...

(Côro)

Como se fosses um altar, Olinda!

Silente, adentrarei
pelos teus átrios...

Como se fosses um altar, Olinda!






Com a paz dos monges

dentro dos mosteiros...

Como se fosses um altar, Olinda!

Meditarei ouvindo

o tempo inteiro...

Como se fosses um altar, Olinda!





a secular canção

das tuas ruas

Como se fosses um altar, Olinda!





Hei de pisar

por essas pedras nuas

Como se fosses um altar, Olinda!




dessas ladeiras

becos e vielas

Como se fosses um altar, Olinda!





salmodiando os feitos

de outras eras

Como se fosses um altar, Olinda!





Com reverência e emoção infinda


Como se andasse em um altar:

Olinda!



As fotos d'Olinda copiei de Bob Omena:

www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=495631

A 3ª foto é do Pedro Valadares:

http://farm2.static.flickr.com/1087/897176688_db390ca8bb.jpg?v=0

*************************************************

O texto é do compadre Eurico, de uma gorada procissão

poética que faríamos pelas ruas d'Olinda, em 1995, e que

se chamaria Psalmos Apócriphos.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A brisa do mar é uma prece verde, no Sítio d'Olinda




Quadros Verdes
Michel Quoist


E a escola é moderna.

O diretor, muito ufano, vai-me apontando todas as
comodidades. De todas as coisas a mais bela,
Senhor, é o quadro verde. Os sábios
estudaram longamente, fizeram experiências.
Agora já sabemos que a cor verde é a cor
ideal, não cansa a vista, pacifica, relaxa os
nervos.

Pensei, então, Senhor, que não
tinhas esperado tanto tempo para pintar de
verde as campinas e o arvoredo. Tuas salas
de aula funcionaram muito bem e para não
nos cansar aperfeiçoaste uma porção de
matizes para Teus prados modernos. Assim
os “achados” dos homens consistem em
descobrir o que pensaste desde toda a
Eternidade.


Obrigado, Senhor, por seres o
bom pai de família que deixa a seus filhinhos
a alegria de descobrirem eles próprios os
tesouros de Tua inteligência e Teu amor.

Mas livra-nos de pensar que fomos
nós que os inventamos sozinhos.



Fonte do txt.:
JESUS, RICARDO, ROBERTO, Português Interpretação,
São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2º vol., 5ª Ed., 1971, p. 24.

Fonte da img.:
www.marceloclemente.com/Olinda.jpg


Dedico esta postagem, especialmente, à amiga Jacinta,
com os parabéns pelo sobrinho recém-chegado.
Serve também para mostrar que eu e meu compadre Eurico
não somos dois ateus empedernidos, como os últimos textos
do Eu-lírico têm deixado transparecer.

(MICHEL QUOIST nasceu em Havre (França) em 1921. Membro da JOC, ordenado sacerdote em 1947. É doutor em Ciências Sociais pelo Instituto Católico de Paris. Escreveu inúmeras obras, traduzidas em várias línguas e regularmente reeditadas, das quais algumas ultrapassam um milhão de exemplares).

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Drummond visita o Sítio d'Olinda


















Fala, Amendoeira



«Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que prestemos alguma atenção à natureza - essa natureza que não presta atenção em nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre o céu e o chão - névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista, depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam todas verdes, menos uma. Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à porta, companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal proposto ao seu destino.Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais, alguns fios eléctricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer, cada dia, garotos procuram subir-lhe o tronco. Nenhum desses incómodos lhe afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos transeuntes.Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas amarelas e outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que chegava mesmo até o marrom - cor final de decomposição, depois a qual as folhas caem. Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como o cronista lhe perguntasse - fala, amendoeira - por que fugia ao rito de suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:- Não vês? Começo a outonear. É 21 de Março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono.Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.- E vais outoneando sozinha?- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.- Somos todos assim.- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exactamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.- Não me entristeças.- Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho.»


Carlos Drummond de Andrade - Fala, amendoeira (1957)
Publicada por Paulo Araújo em
1.2.06
http://dias-com-arvores.blogspot.com/2006/02/fala-amendoeira.html

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Deus numa caixa de sapatos ...




ou DUAS OU TRÊS IDEIAS SOBRE DEUS

por José Eduardo Agualusa


Em Maio de 1953 o semanário carioca, Flan, publicou uma entrevista do poeta e compositor Jayme Ovalle, conduzida por Vinicius de Moraes. À pergunta, "o que é o câncer?", respondeu Ovalle: "O câncer é a tristeza das células. A tristeza é que dá câncer". A frase serviria de epígrafe a um poema de Vinícius, "Sob o Trópico de Câncer", que começa assim: "Sai, Câncer / Desaparece, parte, sai do mundo / Volta à galáxia onde fermentam / Os íncubos da vida, de que és / A forma inversa". O último verso, "Deus está com câncer", ocorre-me com alguma frequência, sobretudo em momentos de desalento diante do estado do mundo. Não sei se Deus adoeceu, mas suspeito que há-de ter, realmente, perdido a alegria.
Na famosa entrevista conduzida por Vinicius, Ovalle também fala de Deus, aliás, com muito bom humor. "Deus fez muito rascunho", diz: "o hipopótamo, por exemplo, é um rascunho de Deus". E quando, logo a seguir, Vinicius quer saber porque fez Deus as mulheres feias, responde Ovalle: "As normalmente feias, Deus fez para casarem com homens bonitos. Quanto às irremediavelmente feias, foram feitas por Deus para povoar as igrejas de madrugada, para usarem grandes rosários e serem beatas".
Ao longo dos últimos milénios a humanidade tem prestado culto a bosques, rios, insectos, serpentes, lobos, ninfas, anjos, gigantes, bodes, estrelas, montanhas, ao fogo, ao vento, à noite, e a todas as combinações possíveis entre isto tudo. Ainda hoje há quem cultue uma pedra negra, e quem prefira rogar a ajuda de um simpático elefante com corpo de homem. Quanto a mim, de todos os deuses que tenho conhecido, em geografias muito diversas, afeiçoei-me sobretudo a um imenso Buda, algures na Malásia, que sorri, reclinado, enquanto dorme. Há também nos terreiros de candomblé, no Brasil, duas ou três figuras secundárias que desde há muito suscitam a minha simpatia e curiosidade. Um marinheiro, um negro elegantíssimo, de chapéu panamá na cabeça, e, sobretudo, um índio vestido com um cocar de penas e largas calças de couro. Não se trata de um índio brasileiro, como seria de esperar, mas de um índio norte-americano, saído directamente de um filme de caubóis. Suponho que a televisão e o cinema tenham tornado os índios norte-americanos mais familiares à generalidade dos brasileiros do que as suas próprias populações originais. Os pessimistas, talvez protestem, exaltados, ao darem com o índio - "alienação! Imperialismo cultural!". Os optimistas, pelo contrário, dirão que a divindade é mais um exemplo da extraordinária capacidade integradora da cultura popular brasileira, que tudo devora e assimila. Os mais crédulos hão-de querer saber, simplesmente, o que come o santo e quais os seus atributos. Eu gosto dele porque me leva de volta à infância. Um deus que nos leve de volta à infância - pode haver melhor? Ao lado do índio poderia colocar ainda o Pato Donald e um carrinho de rolamentos. Mas o índio, claro, tem outra dignidade. Fica-lhe melhor o papel de pequeno Deus.
A filha de uma amiga, uma menina de dois anos, ouvindo falar de Deus (a políticos e sacerdotes, bonecos animados, cantores e modelos) ficou curiosa. Sacudia, imperativa, as saias da mãe: "A menina quer Deus!". Um dia, porque ela insistisse, já chorando, e não havendo um deus que a sossegasse, deram-lhe o objecto que estava mais à mão: uma caixa de sapatos vazia. Resultou. Agora ela arrasta a caixa de sapatos para todo o lado. As visitas, vendo-a tão atenta à caixa, perguntam-lhe:
- O que levas aí dentro?
E ela, impávida, com os seus grandes olhos líquidos:
- É Deus!
Não a contesto. Acho mais provável que habite um deus dentro daquela caixa, venerando a menina, olhando por ela e protegendo-a, do que na casa daqueles que matam, ou se deixam matar, em nome Dele.


in Revista Pública - agosto 2006

Texto e imagem apud:
http://anomalias.weblog.com.pt/arquivo/cat_religiao

terça-feira, 26 de agosto de 2008

O Guardador de Rebanhos VIII




(Nota do blogueiro: prestem bem atenção nos versos omitidos pela cantora. Em nome de sua fé (o que é até compreensível) ela censurou os versos do poeta, esquecendo, porém, que Alberto Caieiro é apenas "fingere pessoano" e do fato de que o enunciador do poema é um eu-lírico. Mas o Santo Ofício (Gratia Dio não tem mais poderes!) teria ateado fogo ao poema e ao poeta)

Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem

E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz

E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.

Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
.........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade

Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
...............................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
...............................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?


Fernando Pessoa
(Alberto Caeiro)
08-03-1914


Uma visão breve sobre a vida e a obra do maior poeta da língua portuguesa:

- 1888: Nasce Fernando Antônio Nogueira Pessoa, em Lisboa.
- 1893: Perde o pai.
- 1895: A mãe casa-se com o comandante João Miguel Rosa. Partem para Durban, África do Sul.
- 1904: Recebe o Prêmio Queen Memorial Victoria, pelo ensaio apresentado no exame de admissão à Universidade do Cabo da Boa Esperança.
- 1905: Regressa sozinho a Lisboa.
- 1912: Estréia na Revista Águia.
- 1915: Funda, com alguns amigos, a revista Orpheu.
- 1918/1921: Publicação dos English Poems.
- 1925: Morre a mãe do poeta.
- 1934: Publica Mensagem.
- 1935: Morre de complicações hepáticas em Lisboa.

Extraído do livro "Fernando Pessoa - Obra Poética", Cia. José Aguilar Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 209.

Fonte do texto:
http://www.releituras.com/fpessoa_guardador.asp

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Borges, o memorioso!




















Em visita ao Sítio d'Olinda, um personagem magistral de J. L. Borges. Apresento-lhes, abaixo

Funes, o Memorioso
(conto borgeano)

Jorge Luis Borges

Tradução de Marco Antonio Frangiotti



Recordo-o (não tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado, apenas um homem na terra teve o direito e tal homem está morto) com uma obscura passiflórea na mão, vendo-a como ninguém jamais a vira, ainda que a contemplasse do crepúsculo do dia até o da noite, uma vida inteira. Recordo-o, o rosto taciturno e indianizado e singularmente remoto, por trás do cigarro. Recordo (creio) suas mãos delicadas de trançador. Recordo próximo dessas mãos um mate, com as armas da Banda Oriental, recordo na janela da casa uma esteira amarela, com uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente a sua voz; a voz pausada, ressentida e nasal de orillero antigo, sem os assobios italianos de agora. Mais de três vezes não o vi; a última, em 1887... Parece-me muito feliz o projeto de que todos aqueles que o conheceram escrevam sobre ele; meu testemunho será por certo o mais breve e sem dúvida o mais pobre, porém não o menos imparcial do volume que vós editareis. A minha deplorável condição de argentino impedir-me-á de incorrer no ditirambo - gênero obrigatório no Uruguai; quando o tema é um uruguaio. Literato, cajetilla, porteño. Funes não disse essas palavras injuriosas, mas de um modo suficiente me consta que eu representava para ele tais desventuras. Pedro Leandro Ipuche escreveu que Funes era um precursor dos super-homens; "Um Zaratustra cimarrón e vernáculo"; não o discuto, mas não se deve esquecer que era também natural de Fray Bentos, com certas limitações incuráveis.
A minha primeira lembrança de Funes é muito clara. Vejo-o em um entardecer de Março ou Fevereiro do ano de 1884. Meu pai, nesse ano, levara-me a veranear em Fray Bentos. Voltava com meu primo Bernardo Haedo da estância de San Francisco. Voltávamos cantando, a cavalo, e essa não era a única circunstância da minha felicidade. Após um dia abafado, uma enorme tempestade cor cinza escura havia escondido o céu. Alentava-me o vento Sul, já enlouqueciam-se as árvores; eu tinha o temor (a esperança) de que nos surpreenderia em um descampado a água elemental. Apostamos uma espécie de corrida com a tempestade. Entramos em um desfiladeiro que se aprofundava entre duas veredas altíssimas de tijolo. Escurecera repentinamente; ouvi passos rápidos e quase secretos no alto; levantei os olhos e vi um rapaz que corria pela vereda estreita e esburacada como que por uma parede estreita e esburacada. Recordo a bombacha, as alpargatas, recordo o cigarro no rosto duro, contra a densa nuvem já sem limites. Bernardo gritou-lhe imprevisivelmente: Que horas são, Ireneo? Sem consultar o céu, sem deter-se, o outro respondeu: Faltam quatro minutos para as oito, jovem Bernardo Juan Francisco. A voz era aguda, zombeteira.
Sou tão distraído que o diálogo a que acabo de me referir não teria chamado a minha atenção se não o tivesse enfatizado o meu primo, a quem estimulavam (creio) certo orgulho local, e o desejo de mostrar-se indiferente à réplica tripartite do outro.
Disse-me que o rapaz do desfiladeiro era um tal Ireneo Funes, conhecido por algumas peculiaridades como a de não se dar com ninguém e a de saber sempre a hora, como um relógio. Complementou dizendo que era filho de uma passadeira do povo, Maria Clementina Funes, e que alguns diziam que seu pai era um médico de saladeiro, um inglês O'Connor, e outros um domador ou rastreador do departamento de Salto. Vivia com a sua mãe, na curva da quinta dos Laureles.
Nos anos de 1885 e 1886 veraneamos na cidade de Montevideo. Em 1887 voltei a Fray Bentos. Perguntei, como é natural, por todos os conhecidos e, finalmente, pelo "cronométrico Funes". Responderam-me que um redomão o havia derrubado na estância de San Francisco, e que havia se tornado paralítico, sem esperança. Recordo a sensação de incômoda magia que a notícia despertou-me: a única vez que eu o vi, vínhamos a cavalo de San Francisco e ele andava em um lugar alto; o fato, na boca do meu primo Bernardo, tinha muito de sonho elaborado com elementos anteriores. Disseram-me que não se movia da cama, os olhos repousados na figueira do fundo ou em uma teia de aranha. Ao entardecer, permitia que o levassem para perto da janela. Levava a arrogância ao ponto de simular que era benéfico o golpe que o havia fulminado... Duas vezes o vi atrás da relha, que toscamente enfatizava a sua condição de eterno prisioneiro; uma, imóvel, com os olhos cerrados; outra, imóvel também, absorto na contemplação de um aromático galho de santonina.
Não sem um certo orgulho havia iniciado naquele tempo o estudo metódico do latim. A minha mala incluía o De viris illustribus de Lhamond, o Thesaurus de Quicherat, os comentários de Júlio César e um volume ímpar da Naturalis historia de Plínio, que excedia (e continua excedendo) as minhas modestas virtudes de latinista. Tudo se propaga em um povoado; Ireneo, em seu rancho das orillas, não tardou em enteirar-se da chegada desses livros anômalos. Dirigiu-me uma carta florida e cerimoniosa, na qual recordava no encontro, desditosamente fugaz, "do dia 7 de Fevereiro de 1884", ponderava os gloriosos serviços que Don Gregorio Haedo, meu tio, falecido nesse mesmo ano, "havia prestado às duas pátrias na valorosa jornada de Ituzaingó", e me solicitava o empréstimo de qualquer dos volumes, acompanhado de um dicionário "para a boa intelecção do texto original, pois todavia ignoro o latim". Prometia devolvê-los em bom estado, quase imediatamente. A letra era perfeita, muito perfilada; a ortografia, do tipo que Andrés Bello preconizou: i por y, j por g. A princípio, suspeitei naturalmente tratar-se de uma zombaria. Meus primos asseguraram que não, que eram coisas de Ireneo. Não sabia se atribuía ao atrevimento, à ignorância ou à estupidez a idéia de que o árduo latim não requeresse mais instrumento do que um dicionário; para desencorajá-lo completamente enviei-lhe o Gradus ad parnassum de Quicherat e a obra de Plínio.
No dia 14 de Fevereiro telegrafaram-me de Buenos Aires que voltasse imediatamente, pois meu pai não estava "nada bem". Deus me perdôe; o prestígio de ser o destinatário de um telegrama urgente, o desejo de comunicar a toda Fray Bentos a contradição entre a forma negativa da notícia e o peremptório advérbio, a tentação de dramatizar a minha dor, fingindo um estoicismo viril, talvez distraíram-me de toda a possibilidade de dor. Ao fazer a mala, notei que me faltavam o Gradus e o primeiro tomo da Naturalis historia. O "Saturno" sarpava no dia seguinte, pela manhã; essa noite, depois da janta, dirigi-me à casa de Funes. Assombrou-me que a noite fora não menos pesada que o dia.
No humilde rancho, a mãe de Funes recebeu-me.
Disse-me que Ireneo estava no quarto dos fundos e que não me estranhasse encontrá-lo às escuras, pois Ireneo preferia passar as horas mortas sem acender a vela. Atrevessei o pátio de lajota, o pequeno corredor; cheguei ao segundo pátio. Havia uma parreira; a escuridão pareceu-me total. Ouvi prontamente a voz alta e zombeteira de Ireneo. Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha das trevas) articulava com moroso deleite um discurso, ou prece, ou encantamento. Ressoavam as sílabas romanas no pátio de terra; o meu temor as tomava por indecifráveis, intermináveis; depois, no enorme diálogo dessa noite, soube que formavam o primeiro parágrafo do 24o capítulo do 7o livro da Naturalis historia. O tema desse capítulo é a memória: as últimas palavras foram ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum.
Sem a menor mudança de voz, Ireneo disse-me o que se passara. Estava na cama, funmando. Parece-me que não vi o seu rosto até a aurora; creio lembrar-me da brasa momentânea do cigarro. O quarto exalava um vago odor de umidade. Sentei-me, repeti a estória do telegrama e da enfermidade de meu pai.
Chego, agora, ao ponto mais difícil do meu relato. Este (é bem verdade que já o sabe o leitor) não tem outro argumento senão esse diálogo de há já meio século. Não tratarei de reproduzir as suas palavras, irrecuperáveis agora. Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que me disse Ireneo. O estilo indireto é remoto e débil; eu sei que sacrifico a eficácia do meu relato; que os meus leitores imaginem os períodos entrecortados que me abrumaram essa noite.
Ireneo começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Metríadates e Eupator, que administrava a justiça dos 22 idiomas de seu império; Simónides, inventor da mnemotecnia; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado de uma só vez. Com evidente boa fé maravilhou-se de que tais casos maravilharam. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o azulego o derrubou, ele havia sido o que são todos os cristãos; um cego, um surdo, um tolo, um desmemoriado. (Tratei de recordar-lhe a percepção exata do tempo, a sua memória de nomes próprios; não me fez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando or ecobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paralítico. Fato pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora a sua percepção e sua memória eram infalíveis.
Num rápido olhar, nós percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os brotos e cachos e frutas que se encontravam em uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882 e podia compará-los na lembrança às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da ação de Quebrado. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a aurora; Minha memória, senhor, é como depósito de lixo. Uma circunferência em um quadro-negro, um triângulo retângulo; um losango, são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo se passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma ponta de gado em um coxilha, com o fogo mutante e com a cinza inumerável, com as muitas faces de um morto em um grande velório. Não sei quantas estrelas via no céu.
Essas coisas me disse; nem então nem depois coloquei-as em dúvida. Naquele tempo não havia cinematógrafos nem fonógrafos; é, no entanto, verossímil e até incrível que ninguém fizera um experimento com Funes. O cérto é que vivemos postergando todo o postergável; talvez todos saibamos pronfundamente que somos imortais e que mais cedo ou mais tarde, todo homem fará todas as coisas e saberá tudo.
A voz de Funes, vinda da escuridão, seguia falando.
Disse-me que em 1886 havia elaborado um sistema original de numeração e que em muito poucos dias havia ultrapassado vinte e quatro mil. Não o havia escrito, porque o pensado uma só vez já não podia desvanecer-lhe. Seu primeiro estímulo, creio, foi o descontentamento de que os trinta e três uruguaios requeressem dois signos e três palavras, em lugar de uma só palavra e um só signo. Aplicou logo esse desparatado princípio aos outros números. Em lugar de sete mil e treze, dizia (por exemplo) Máximo Pérez; em lugar de sete mil e catorze, A Ferrovia; outros números eram Luis Melián Lafinur, Olivar, enxofre, os rústicos, a baleia, o gás, a caldeira, Napoleão, Agustín de Vedia. Em lugar de quinhentos, dizia nove. Cada palavra tinha um signo particular, uma espécie de marca; as últimas eram muito complicadas... Eu tratei de explicar-lhe que essa rapsódia de vozes desconexas era precisamente o contrário de um sistema de numeração. Eu lhe observei que dizer 365 era dizer três centenas, seis dezenas, cinco unidades; análise que não existe nos "números". O Negro Timoteo a manta de carne. Funes não me entendeu ou não quis me entender.
Locke, no século XVII, postulou (ou reprovou) um idioma impossível no qual cada coisa individual, cada pedra, cada pássaro e cada ramo tivesse um nome próprio; Funes projetou alguma vez um idioma análogo, mas o desejou por parecer-lhe demasiado geral, demasiado ambígüo. De fato, Funes não apenas recordava cada folha de cada árvore de cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria logo por cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não havia acabo ainda de classificar todas as lembranças da infância.
Os dois projetos que foi indicado (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas revelam certa balbuciante grandeza. Nos deixam vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o esqueçamos, era quase incapaz de idéias gerais, platônicas. Não apenas lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abarcava tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; perturbava-lhe que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro (visto de frente). Sua própria face no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no cada vez. Comenta Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os avanços tranqüilos da corrupção, das cáries, da fatiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso. Babilônia, Londres e Nova York têm preenchido com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentira o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre subúrbio sulamericano. Era-llhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas na cama, na sombra, figurava a si mesmo cada rachadura e cada moldura das casas distintas que o redoavam. (Repito que o menos importante das suas lembranças era mais minucioso e mais vivo que nossa percepção de um gozo físico ou de um tormento físico). Em direção ao leste, em um trecho não pavimentado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava negras, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção virava o rosto para dormir. Também era seu costume imaginar-se no fundo do rio, mexido e anulado pela corrente.
Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.
A receosa claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.
Então vi a face da voz que toda a noite havia falado. Ireneo tinha dezenove anos; havia nascido em 1868; pareceu-me tão monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que cada uma das minhas palavras (que cada um dos meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar trejeitos inúteis.
Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.



- Fim -






Tradução de Marco Antonio Frangiotti. In Borges: Prosa Completa, Barcelona: Ed. Bruguera, 1979, vol. 1., pgs. 477-484

terça-feira, 22 de julho de 2008

Índios (uma releitura no Sítio)

Quadro ufanista que retrata a missa campal na invasão do Brasil


ÍNDIOS


“...nos deram espelhos, vimos um mundo doente...”
.........................................................Renato Russo


Certo dia descobrimos uns galegos
Com seu deus crucificado
e, incautos, nos entregamos, cordeiros,
ao holocausto...

Descobrimos a Europa
Com os seus princípios...de bosta,
seus missais e arcabuzes,
a sua ciência morta,
E com as doenças de um mundo
ranzinza e antivital.

Nesse dia tão medonho
nos tornamos Portugal.

Contaram-nos do amor desse deus manso e pacífico,
por seus tataravós assassinado,
E, poluindo nossas almas inocentes,
nos vestiram com esse manto fictício,
e esses valores nauseabundos do ocidente.

Quem sabe, Nietzche, salve-nos, quem sabe,
pela transvaloração dessa cultura.
E que essa Tribo ensandecida morra
pra esse velho Novo Mundo infectado pela usura,
com rosários de prata sobre o peito
e pedaços de oiro em nossos dentes.

Mas morramos numa festa do Quarup
sem pecado, (que o pecado cá não existe)
sem medo e sem mentiras clericais,
celebrando a floresta ou a que nos resta
alegremente livres...
sim, felizes!

****************************************

Eurico
(Compadre Carlos, fiz essa releitura especial
para esta edição do Sítio d'Olinda,
de um poema antigo, que ora
dedico a Roberto Gambini.)

segunda-feira, 21 de julho de 2008

A ALMA ANCESTRAL DO BRASIL















Índia Guajá
gravura em metal de Carlus Lisboa



(texto de Roberto Gambini, do livro Espelho Índio)

Tenho refletido sobre o Brasil apoiando-me em minhas duas vertentes, a de sociólogo e a de analista junguiano. Para entender uma pessoa preciso compreender o meio em que ela vive e só posso entendê-lo se compreender a pessoa. Essas duas dimensões caminham eternamente juntas e da mesma forma como me sinto sempre fascinado para compreender os mecanismos do inconsciente, as idéias de Jung e a fenomenologia do espírito, sinto-me permanentemente atraído a pensar sobre este país. Minha maneira de refletir sobre o Brasil tem sido através da imagem da alma - e quando digo alma, esta palavra tão usada e abusada pelo Catolicismo, digo algo que todo mundo entende. Estou, há muito tempo, em busca da alma brasileira e para isso tenho feito uma reflexão acerca de nossa origem, de nossa História e de nosso drama arquetípico. Num certo momento da trajetória senti-me compelido a retroceder no tempo para muito antes de nossa origem européia e foram então tomando forma a idéia e o interesse por algo que passei a chamar de "alma ancestral do Brasil".


Nós, como povo, temos um grande problema, que é a ausência de um mito de origem. Temos vergonha de nosso passado, que encaramos como se fosse um buraco negro, uma bruma, uma imagem vagamente aterradora ou claramente desprezível. Começamos a contar nossa história de povo a partir de um ato fabuloso chamado Descobrimento - que sabemos ser uma inverdade e o termo correto, Invasão - e construímos um arremedo de identidade a partir de 1500, o ano do encontro de duas parcelas da Humanidade, uma caucasiana e outra autóctone, indígena. Mas não levamos em conta o mito de origem. Tal fato me parece acarretar graves conseqüências no que diz respeito à estruturação de nossa consciência coletiva e à maneira como individual e coletivamente nos relacionamos com as camadas profundas do inconsciente. Como negamos nossa origem ancestral, nós a deturpamos, nós a transformamos em algo diverso do que é. Enquanto povo, já começamos destruindo aquilo que tínhamos de mais precioso. Acolho essa idéia com bastante interesse, porque acho que ela nos ajuda a entender o subdesenvolvimento, que não nos "aconteceu" no século XX; nós já começamos subdesenvolvidos. Porque a alma ancestral brasileira é de uma riqueza, de uma importância, de uma profundidade tal que, se não a tivéssemos negado, estaríamos realizando através de nossa história uma grande síntese de duas maneiras de ser humano, a européia e a ameríndia.


Mas não foi feita uma síntese histórica de duas polaridades; o que ocorreu historicamente foi a negação de um pólo pela predominância arrasadora de outro. Seria bom se começássemos a pensar em nós mesmo do seguinte modo: temos atrás de nós um tesouro inestimável, sistematicamente negado e ignorado através dos séculos. Como isso se deu historicamente a partir do século XVI é fácil pesquisar. Mais difícil é reconhecer que essa negação continua até hoje a se repetir no interior de nossa psique e é por essa razão que me sinto motivado a falar sobre esse tema.
Geração após geração repete-se na cultura e em cada um a destruição de uma raiz preciosa e jamais reconhecida. Jung nos ensinou claramente: a inconsciência coletiva se auto-perpetua. Nossos filhos continuam a carregar a mesmo coisa que nós.
Será que a consciência coletiva brasileira vai continuar ignorando e desqualificando sua raiz mais profunda, base e sustentação de sua mais verdadeira individuação? Quando digo raiz, estou pensando em coisas mais precisas. As evidências atuais da Arqueologia, que é um campo em rápida transformação em nosso meio, indicam que o território ameríndio vinha sendo ocupado por seres humanos não há dois, três ou quatro mil anos, como sempre se supôs, mas há dez, vinte, trinta... Essa é uma disputa teórica que envolve interesses acadêmicos pesados, porque se houver o reconhecimento de que o homem entrou, certamente pela Península de Yucatã, na América do Sul há cinqüenta mil anos, isso muda muitas afirmações evolucionistas e muita teoria da Antropologia Física sobre ocupação de territórios, expansão, adaptação, difusão de inventos e periodizações culturais. Há muitos interesses pseudocientíficos em jogo. Mas hoje existe o método de datação pelo carbono 14 e muita coisa ficará esclarecida. Os professores de História do Brasil vão ter que se reciclarem para poderem então dizer às crianças algo do tipo:
"imaginem que este solo em que pisamos talvez há cinqüenta mil anos já era habitado..." Isso significa que as grandes questões da humanidade, as eternas questões do ser humano, já estavam sendo elaboradas e já tinham sido resolvidas por esses povos indígenas há milhares de anos, muito antes do surgimento de Portugal ou da própria civilização européia que veio a ser a matriz de nossa atual consciência. Que questões são essas? São as seguintes:


Como sobrevive e não se morre de fome, de abandono, de ataques violentos? Como se vive em sociedade? Como se procria? Como se organiza o convívio? Como se resolve o problema da cultura material, da produção de bens de uso? Como se dá sentido à vida? O que é o bom, o belo, o justo? O que é cruel, mau, injusto? O que é a morte, e o que há depois dela? O que é a doença, como se promove a cura? Como tudo começou? O que torna a vida bela e nos faz ter vontade de vivê-la? Onde se pode cozinhar uma comida, onde se pode guardar água, onde se pode morar? Como se atravessa um rio, como se mata uma onça?...


Essas questões foram todas, sem exceção, resolvidas pelos povos ditos primitivos que habitavam as Américas de Norte a Sul de maneira tal que o resultado acumulado é um saber altamente organizado, profundo, completo, coerente, muito diverso do nosso e ao qual chamo de tesouro (ou de raiz). É um conjunto de observações da natureza que se estruturou e confirmou ao longo de séculos e séculos, produzindo conhecimento sobre a terra, o corpo, a mente, o espírito, o grupo, os outros e os deuses, a flora e a fauna, a meteorologia, as águas, o vento e o fogo, a cópula, os sentimentos, a dor, os desejos, a morte e o além, o horror, o encantamento e a eternidade. Isso tudo cria alma. O nome disso tudo é alma ancestral, que passa a ser o patrimônio humano supremo, transmitido pela educação quando possível e que com o passar do tempo acaba se incorporando como uma qualidade da cultura e da consciência. O que é um arquétipo? Um arquétipo é uma predisposição, um formato imanente à psique, mas com um ponto de origem no tempo, na História e no espaço. O arquétipo paterno ou materno nasceu no escuro do passado, nos animais e depois nos seres humanos, através de infinitas repetições, que se cristalizaram em nossa psique como uma prontidão para reagir a atuar em determinadas situações que os evocam. Ora, os arquétipos estavam se formando também no Brasil pré-histórico, nesse passado remoto e negado que imaginamos como não nos pertencendo e que vamos buscar nos livros e nas teorias que o evocam alhures e nunca aqui. Há arquétipos da psique brasileira que estão muito bem datados e localizados no solo ameríndio. Lembremo-nos de Jung, que dizia que a psique tem um solo, a psique não vive no ar. Terra e psique, espírito e matéria são duas faces da mesma realidade e não precisamos ler isso em Mysterium Conjunctionis apenas. Isso está no solo brasileiro. Os arquétipos também se fizeram aqui, como em outras partes do planeta.

Proponho que olhemos para isso e nos perguntemos quantos deles estão adormecidos no nosso inconsciente profundo e o que pode nos acontecer, enquanto povo e enquanto indivíduos, se soubermos entrar em contato com esse lençol freático através de uma raiz suficientemente funda.
Eu queria ver isso acontecer no Brasil no terreno da psique. A tarefa histórica que nos cabe é vitalizar essa raiz e absorver dessa camada profunda a seiva que vai nos tirar do subdesenvolvimento. E nos tornar, a nós que trabalhamos com isso, junguianos brasileiros - porque estaremos expressando a alma que na verdade nos mantém. Quer reconheçamos ou não, atravessamos a vida montados na energia dessa alma - pois negada ou não (como mandou Jung gravar sobre o portal de sua casa em Küsnacht): Ela está sempre presente. Há mitos em nosso imaginário ancestral - como por exemplo o da proibição de auto-devoração - cujo núcleo deve remontar à época perdida no tempo em que o homem se condicionou a viver de caça e não de carne humana, provavelmente quando estava descendo das árvores, procurando o abrigo das cavernas e inventando as primeiras armas e ferramentas. Ninguém se aventurou ainda a fazer uma tentativa de datação desses mitologemas - mas para quê fazê-la, se a consciência contemporânea não atribui a menor relevância psíquica à incorporação desses fragmentos perdidos de alma ancestral? A proibição do incesto enquanto condição para o nascimento da cultura - tema tão caro a Freud, Jung ou Lévi-Strauss - está decretada nos mitologemas brasileiros coetâneos ou subseqüentes ao aparecimento das primeiras regras de parentesco. O mito segundo o qual a mulher transformada em cobra não se acasala com o irmão, mas engole seu corpo e posteriormente o regurgita coberto de pinturas, é a demonstração brasileira da idéia de que o incesto é proibido porque, se não o fosse, não haveria nem sociedade, nem arte. No aconchego dos ninhos quentes do convívio endogâmico, um rapaz se deixaria ficar para sempre com as mulheres de seu sangue e não sairia jamais em busca de outras, com as quais fundaria novas unidades de parentesco, reprodução e troca econômica. Não haveria circulação de mulheres (para usar a terminologia de Lévi-Strauss), que ao lado da circulação de bens e de palavras constitui uma das estruturas elementares da vida cultural em sociedade. Onde há incestos não há cultura e não há troca, não há humanidade, nem evolução. Nossos mitos sabiam e prescreviam isso.

Mas nós não sabemos que nossos mitos já sabiam. Nem que tínhamos mitos. Ora, essa idéia, que é uma idéia teoricamente trabalhada pela Antropologia, pela Psicanálise ou pela Psicologia Analítica, está muito bem representada na mitologia brasileira. Não seria um motivo de crescimento interno para nós entrarmos em contato com isso - nós, que ficamos voltados para fora sempre, invejando talvez os quatro mil anos do mito de Gilgamesh, o mais antigo da civilização ocidental..., mas, e os nossos mitos ignorados? Tenho certeza de que se Jung tivesse tido a oportunidade de conhecer a história indígena das Américas ele teria incorporado todo esse riquíssimo material em sua obra, como objeto de estudo per se ou como corpus amplificatório.
A tarefa ficou para nós. Proponho justamente uma reflexão sobre tudo isso em termos anímicos. Nós analistas cuidamos da alma. Temos que perceber quais partes dela estão silenciadas, quais partes estão presas, quanta libido está cristalizada na alma brasileira - porque é fundamentalmente isso que vai nos ajudar a nos tornarmos aquilo que podemos nos tornar e deixarmos de ser sub, isto é, não chegarmos a ser aquilo que potencialmente somos. Esse é o nosso grande drama, essencialmente brasileiro, e o nosso desafio - o desafio do atraso. Ficamos sempre abaixo e aquém - e isso não se resolve nem estudando, nem absorvendo o Primeiro Mundo, nem atribuindo essa tarefa à Política, à Economia, ao Direito Internacional, à Constituição. Essa é uma tarefa psíquica: sairmos da maldição de não podermos ser aquilo que potencialmente somos aprofundando nossa raiz nesse lençol freático subterrâneo onde jaz fossilizada a alma brasileira. Cada paciente nosso traz dentro de si essa história em miniatura, dizendo sem claramente dizer: "eu podia ser um pouquinho mais aquilo que no fundo sei que sou". E nós, escutando outras palavras, ouvimos exatamente isso e seja qual for nossa lida de trabalho, tentaremos atingir essa camada não vivida do paciente. E para isso temos que entendê-lo como uma pequena peça de um todo que também espera ser compreendido, e nos entendermos a nós mesmos como instrumento de desvelamento do adormecido. Esse é o núcleo da reflexão que tenho feito sobre nossa alma ancestral e agora eu gostaria, talvez para equilibrar a argumentação, de dizer algo sobre a alma brasileira que se desenvolve a partir da negação da ancestralidade, historicamente em 1500.

Foi aí que anos atrás comecei meu estudo, a partir de uma perspectiva em que se combinam a Psicologia Analítica, a História e a Antropologia. Minha tese de formação no Instituto C.G. Jung de Zurique foi uma análise da correspondência jesuítica. Essas cartas, escritas no decorrer do século XVI, são os primeiros documentos brasileiros, a semente de nossa literatura e de nossa consciência coletiva cristã. A primeira delas é de 1549, na qual o recém-chegado missionário Manoel da Nóbrega inicia um relato, ao qual se juntariam outras vozes, em que é descrita a terra brasileira e seus habitantes. Achei que entender o que vinha exposto nessas cartas me ajudaria a perceber, enquanto analista, qual o conflito original a partir do qual teria começado a se estruturar a alma brasileira. O ano de 1500, se relembrarmos as considerações que faz Jung em Aion, é um ano marcado arquetipicamente, configurando um dos pontos de inflexão da dualidade que determina a história dos dois mil anos da era de Peixes. Na imagem astrológica, a metade do segundo peixe corresponde ao ano de 1500 e ao Renascimento italiano - e, como sabemos, ao Descobrimento (melhor dizendo, à Invasão) do Brasil pelos portugueses. É, portanto, o ano da retomada da alma ocidental, da alma latina. Mas Jung não diz, porque essa realidade não lhe era tão presente, que esse é também o ano (arredondemos as datas) do encontro entre brancos e ameríndios. A "descoberta" do Novo Mundo não é apenas uma conseqüência dos progressos da navegação desenvolvida pela escola de Sagres, da expansão mercantil ou do extremado arrojo português constelado nesse período, mas um fato histórico determinado arquetipicamente:
O encontro de duas partes da humanidade estruturadas sobre bases distintas.

Cada parte envolvida viveu e vive até hoje as conseqüências desse portentoso evento. Para Portugal, foi o apogeu de sua coragem ultramarina, de sua capacidade de penetração e conquista - e o momento de encontrar sua alteridade, seu oposto. Para a nova terra, foi o começo da destruição de sua alma ancestral e de suas populações autóctones. Dois arcos cruzando-se no tempo: um em ascensão, outro em declínio. Para nós junguianos essa idéia, ou esse fato histórico, pode render muito. Porque o processo de individuação, pessoal ou coletivo, é a busca do Um pelo Outro. Cada um de nós procura um outro desconhecido dentro si, assim como este país deve procurar outro, melhor, mais verdadeiro, mais fincado na própria essência, mas oculto pelo país oficial. Nossa consciência busca seu outro, que é o inconsciente, manancial de onde provém tudo aquilo de que é feita e de onde emana também sua renovação. Nosso ego busca seu outro, que é um ego não apoiado apenas na sombra e na persona, mas um ego sabedor de si e seus limites e, portanto, servidor do Self. A busca pelo outro é sempre uma busca arquetípica e para nós esse outro é o índio. Literal e simbolicamente. Cada um de nós carrega um índio dentro de si na medida em que carregamos um inconsciente e em que não somos apenas isto que mostramos uns para os outros e para nós mesmos. Há mais. Esse mais eu chamo de índio. Quando retomamos a idéia de que na história do nosso país o índio é imediatamente catequizado e escravizado e que já em 1500 sua cultura (nossa alma ancestral) começa a ser destruída, vemo-nos diante de dois possíveis objetos de análise: nosso país e nossa psique. Percebemos então de imediato que nosso trabalho de resgate não vai poder ser feito numa vida, porque a destruição foi calamitosa e atingiu confins ainda não mapeados. Estruturou-se em nós uma consciência que perdeu o acesso a esse índio, ela não tem conceitos nem categorias para tanto e na verdade não sabe como acessá-lo. É preciso então admitir que ao lado desse nosso ser conscientizado e corporificado há uma alma penada, um fantasma de uma essência humana que não tem mais corpo porque não houve síntese. A alquimia só pode ocorrer em nós e como ela não acontece, o pedaço não integrado é um pária na nossa psique e na sua própria terra, é um exilado, uma alma descorporificada que não encontra corpo nunca mais.Isso é uma perda, uma maldição, em nada menos trágica do que as que se abateram sobre Tebas ou Micenas; é um fator desagregante a operar sem trégua em nossa vida consciente e inconsciente. Está aqui bem ao nosso lado, sobre nosso ombro esquerdo, esse Outro nosso que não temos condições de incorporar. Não porque não queiramos, mas porque não há como. Há na verdade muito trabalho a ser feito até que isso seja psiquicamente possível.

O conhecimento da alma ancestral, da cultura indígena e da mitologia precisaria se espalhar pelo Brasil inteiro, para que as novas gerações fossem educadas trazendo em seu imaginário todas as cobras, todas as onças e arco-íris, todos os espíritos da floresta, as maravilhas, os terrores e as metamorfoses que jazem desativados no fundo do inconsciente de todos nós.
Quando esse mundo renegado for introduzido no imaginário das crianças, elas começarão a desenvolver naturalmente outros conceitos e outros valores e a partir de um certo ponto começarão a perguntar por que sim e porque não, por que o Brasil é assim, por que se faz um represa que acaba secando um rio (o Tocantins), por que a floresta está sendo destruída, por que os índios estão acabando - ou seja, que modelo de país é esse que nos subjuga. E esse questionamento todo não será o resultado de um doutrinamento ideológico e político, mas resultará sim do estado em que se encontrar um dia o imaginário da nova geração. Que se nutre de imagens e de nada mais.Somos portanto possuidores de uma verdadeira Enciclopédia Britânica de imagens brasileiras e elas não estão alimentando nosso imaginário. Para falar com a alma é preciso alma, para falar com o imaginário é preciso imagens. Isso vai demorar. Não chegaremos a ver. Mas temos que fazer o que é possível, aqui e agora - no nosso caso de analistas, me parece, o que podemos fazer é trabalhar e criticar a consciência e mostrar-lhe novas possibilidades. Rever e repensar nossas categorias e nossa pseudo-mitologia.

A maneira como a História do Brasil é ensinada é brutalmente anti-psicológica, além de ser falsa em muitos aspectos. É preciso ensinar que o Brasil não foi descoberto, mas ocupado; que isto não era terra de ninguém, mas de alguém que permitiu que o invasor entrasse por achar que este que chegava era seu salvador, alguém que viria trazer-lhe o que faltava. Os índios abriram os braços e as pernas para receber o europeu. Que veio e fincou uma cruz na carne da religião indígena, como um punhal a atravessar-lhe a alma. O padrão de Porto Seguro, primeira marca da conquista - equivalente, numa analogia moderna, à bandeira americana plantada no chão poeirento da Lua pelo astronauta tornado herói - é uma pedra que traz esculpidas numa face as armas de Portugal e na outra a cruz de Cristo. Esses são os símbolos do começo de nossa História. O que significa psicologicamente essa união entre cruz e espada? Como olhar para a cena da Primeira Missa celebrada no Brasil, tema ufanista de nossa pintura acadêmica, e não perceber nela o começo do genocídio religioso? Quem é o verdadeiro Sacrificado dessa eucaristia? Não o corpo de Cristo, mas a alma indígena - e é precisamente essa idéia subversivamente nova e incômoda que a consciência coletiva deve agora abrigar em seu centro, já que por séculos a manteve negada e reprimida.Urge perceber que a história dessa primeira missa e de todas as outras que se seguiram não é porém a alma indígena, como seria de se supor, por ser ela o verdadeiro objeto do sacrificado eucarístico. Transubstanciada, a alma ancestral sacrificada, como a hóstia, seria pela própria coerência simbólica da missa redevolvida perene e fortalecida pela sua junção ao espírito de Cristo. Mas não. Não foi esse o mistério operado pela missa. A missa indígena é o inverso do processo de individuação, é um ritual para desfazer identidades. Na missa que Anchieta verteu para o tupi (Glória), os acólitos índios eram ensinados a pedir a Cristo, cantando:


Vem trazer-me a alegria, trazer-me a tua virtude.
Que eu cumpra a tua palavra
e te ame no meu coração.
Tu te tornaste criança
porque querias viver.Vem! E tomara que o mal
se afaste de mim para sempre.

Ou seja, a missa instaurava como verdade dogmática que o Mal era imanente à essência dos homens da terra e que só a religião do conquistador poderia redimi-los de tal sina perdida. Aí a cruz e a espada se casaram em perfeita e indissolúvel comunhão de bens. O que as missas de todo o período colonial de 1549 em diante fizeram descer pela goela abaixo de uma população conquistada não foi a hóstia da valorização da alma, mas a de sua destruição. Foi a hóstia de um catolicismo defensivo, atacado pela Contra-Reforma, que reinstaura sempre o mesmo mecanismo de projeção da sombra. O catolicismo defensivo faz com que o homem ibérico só veja virtudes em si e projete toda a sua sombra sobre o índio, que passa a ser visto como um ser pecaminoso, criado pelo demônio, que não obedece a ninguém, sem lei e sem Deus, um ser inábil para o trabalho, ocioso e preguiçoso, um lascivo incorrigível, portador de todos os pecados, vícios e imperfeições de que é capaz a natureza humana - se é que humanos chegavam a ser. O invasor se sente assim eticamente legitimado a melhorar esse ser ignóbil, dando-lhe uma alma para que ao menos se eleve à categoria de homem.

Os missionários jesuítas passarão então a reencontrar o mito da Criação, sendo eles obviamente Deus e os índios a argila a ser moldada à imagem e semelhança do criador.
Este é o começo de nossa alma civilizada e esta é nossa pseudo-mitologia. A pedagogia instaurada no Brasil nascente consistia em tomar um aprendente e lhe dizer, como o fez José de Anchieta, o patrono da educação:

"esqueça quem você é, tenha vergonha de si mesmo, largue tudo, olhe para mim e queira ser como eu".

Isso ainda está vivo no Brasil, porque quando olhamos para o Primeiro Mundo até hoje fazemos a mesma coisa, especialmente com relação ao pensamento de lá: "esqueça, esqueça, esqueça, olhe para o outro, queira ser igual ao outro, pense como ele pensa". A pequena escola jesuítica, em torno da qual se formavam os primeiro núcleos habitacionais e para onde convergiam os índios cristianizados, é considerada o marco inicial da sociedade brasileira: meninos índios ensinados por missionários, casas de taipa, cercas, primeiras ruas. Mas a pedagogia que se praticava nessas escolas - São Paulo começou assim, 1554, nos campos de Piratininga - era da negação do ser indígena. Esses fatos históricos todos precisam ser revistos e interpretados sob um novo prisma que nos ponha no encalço da alma perdida e da individuação abortada. As crianças de hoje precisam ouvir que ao chegar aqui a esquadra descobridora cometeu o primeiro ato antiecológico: a derrubada do pau-brasil, que nos nomeia.
Portanto é em 1500 que se origina nosso atual problema de devastação florestal e de destruição da natureza. Uma imagem que expressasse essa idéia deveria aparecer na capa dos livros escolares patrocinados pelo Ministério da Educação até que fosse fixada e lançasse raiz, em substituição a toda uma galeria de imagens alienantes que trazemos no porão da mente e que só nos afastam de nós mesmos por nos manterem na inconsciência. A árvore pau-brasil é um símbolo do nosso Self. Começamos derrubando a árvore que nos nomeia.

O que isso tem a nos dizer sobre nossas próprias dificuldades de crescimento?

Os portugueses aqui chegaram com uma fantasia de Paraíso na cabeça, uma fantasia de encontrar mulheres nuas, fartas e disponíveis, em tudo diversas da mulher da Contra-Reforma, ambientadas numa natureza dadivosa onde tudo fosse permitido e nada fosse pecado - como aliás já lhes garantira o Papa Alexandre VI ao decretar que não havia pecado ao Sul do Equador, o que equivale a dizer que a sombra aqui podia correr solta. Um bom documento para ser interpretado num curso de formação de analista seria a carta de Pero Vaz de Caminha, a primeira a descrever a nova terra e sua gente, na qual claramente se percebe a profecia de que este país teria que agüentar, sobre as frágeis costas, uma descomunal e perigosíssima projeção de Paraíso - que ademais aqui se constituía para gozo e desfrute exclusivo do português, já que o mesmo de sua psique emanava, e jamais da imaginação do habitante da terra, para quem a floresta era sempre (como até hoje se constata) Paraíso, perigo e dureza ao mesmo tempo. O que iria então acontecer? Toda uma obra histórica, absolutamente masculina e fálica, que é a Conquista, será realizada por homens brancos de um lado e mulheres índias, de outro. As mulheres portuguesas nem mesmo nas caravelas embarcaram. Isso já há alguns anos me tem feito pensar no seguinte: a anima estava ausente na formação do Brasil. O português traz consigo uma imagem de mulher que não é a anima, mas uma fantasia que jamais será capaz de integrar, pois para tanto amadurecer era preciso. Porque se em lugar dessa falta de eros e de sentimento estivesse presente a verdadeira anima portuguesa, aquela que se manifesta nos sonetos de Camões, na lírica de Gil Vicente, nas cantigas de amor e de amigo, a maneira como os homens teriam se relacionado com as mulheres teria sido outra e em lugar do mero acasalamento, que foi o que ocorreu, uma junção psíquica poderia ter sido ensaiada.

O que se deu entre o homem e a mulher desses dois mundos foi apenas uma miscigenação a nível biológico, físico e genético, mas não psicológico; sem absolutamente nada a ver com os refinados sentimentos descritos pelo grande Poeta das navegações lusitanas, sentimentos peninsulares que não chegaram a atravessar o Atlântico. Somos portanto um caso histórico de anima ausente. Américo Vespúcio chega aqui e batiza a terra com a forma feminina de seu nome, mas não de sua alma. O nome "América" é sem dúvida uma projeção, mas a projeção de um vazio, de um buraco, que ao se materializar nega e destrói a verdadeira anima que lhe antecedia, porque toda a alma ancestral é feminina em sua própria não-racionalidade. Na hora que o princípio masculino chega aqui - quer dizer, a consciência crescentemente racionalizante do século XVI - ele não se junta ao feminino, mas nega-o ao mesmo tempo em que sobre ele projeta uma fantasia de feminino. Isso pode ser lindamente percebido nos mapas desenhados nessa época, por exemplo, o que estabelece a demarcação das capitanias hereditárias. A linha vertical absolutamente reta do Tratado de Tordesilhas é cortada pelas horizontais igualmente retas que definem os lotes destinados aos primeiros capitães da terra. Aí temos Descartes, subitamente implantado sobre a mata Atlântica!

Na alma ancestral e feminina não há essa linha reta porque ela não funciona de modo cartesiano. A masculinidade psicológica que aqui desembarca chega para arrasar e o faz indo sempre diretamente ao alvo de sua ilimitada cobiça. Há uma ausência do feminino contemporâneo dessa racionalidade, porque também na Europa da Contra-Reforma (certamente não na cultura renascentista) ele estava reprimido. Portanto, o que nos coube foi um feminino projetado. A nível sociológico o que vai decorrer disso é a criação de um povo a partir do acasalamento exclusivo de branco com índia. O primeiro híbrido é o primeiro brasileiro. Esses mestiços vão se multiplicando e gravitando em torno das aldeias que iam se formando, das primeiras capelas e escolas jesuíticas em Porto Seguro, no Arraial da Ajuda, em Salvador, Olinda, Vitória, São Vicente, São Sebastião do Rio de Janeiro, São Paulo de Piratininga.
Os índios vão sendo atraídos e catequizados, as mulheres vão gerando filhos híbridos e esses primeiros mestiços circulam por esses arraiais, criados pelos jesuítas como cristãos convertidos, selvagens domesticados.

Essa é a proto-célula de nossa sociedade, o começo de nosso povo. E aí começa o drama de nossa identidade. Esse filho não pode se identificar nem com o pai, nem com a mãe. Uma índia que se acasalou com um branco e foi batizada não é mais aceita em sua aldeia de origem, ela saiu e para lá não pode mais voltar. E nem sua língua pode transmitir ao filho, fosse ela de que etnia fosse, porque a língua que seu filho falaria era o tupi, língua geral que se imporia sobre as centenas de línguas que então se falava no Brasil, e o português a seguir. A religião ela certamente não transmitiria ao filho, pois acabava de formalmente renunciar à que tinha quando forçosamente aceitava a do dominador, e se alguma mitologia hipoteticamente tentasse ensinar à nova geração, seria por certo o que mais ajudaria a esta na impossível tarefa de se descobrir a si mesma no novo ciclo histórico que se inaugurava. A identificação com a figura materna era portanto inviável. E com o pai tampouco podia esse filho vir a identificar-se, uma vez que na Península Ibérica um mestiço, mameluco e bastardo não tinha lugar na sociedade de estamentos rigidamente delimitados. Se um certo Dom Manuel de Faria resolvesse, depois de trinta anos de Brasil, regressar para Coimbra levando consigo na caravela os filhos que com várias índias tivera, estes não poderiam seguir carreira militar, nem religiosa, nem acadêmica, nem civil, e muito menos casar-se com moças da mesma condição social de seu pai - esses filhos brasileiros seria párias na terra paterna.

Quem é pois esse homem do Novo Mundo que não pode se identificar nem com pai nem com mãe? Nas palavras de Darcy Ribeiro, que melhor do que ninguém levou adiante esta reflexão, ele é um Zé Ninguém.
Portanto, a alma brasileira que se plasma a partir do contato entre duas grandes tradições é a alma do anônimo ninguém. Daquele que não sabe quem é e não pode ter uma raiz nem para o lado de cá, nem para o lado de lá, um desarraigado a carregar consigo uma pesada problemática existencialista, já no século XVI, que nem Heidegger conseguiria equacionar.
No decorrer dos próximos três séculos, a essa crescente massa amorfa se junta o triste contingente de africanos escravizados, igualmente arrancados de seu contexto e misturados entre si para que se anulassem as diferenças étnicas e culturais de origem. A segunda matriz brasileira, aquela resultante da união entre branco e negra e todas as possíveis demais combinações - mantido evidentemente à parte o ventre branco - gerará os mestiços mulatos que sofrerão a mesmo imposição existencial de não poderem saber quem são e de onde vêm. Mas de ventre branco também nasceram bastardos. Preocupados com a devassidão de costumes sexuais que tão cedo se implantava no Brasil, os jesuítas logo se apressaram a solicitar que a Companhia de Jesus em Lisboa despachasse para a Colônia mulheres brancas para que se garantisse um mínimo de eugenia. E eis que em meados do século XVI aporta no litoral a nau das prostitutas, desembarcadas após receberem a bênção a bordo. Com elas veio a sífilis para uma terra que até então desconhecia esse e outros males. E com elas os portugueses acasalarão como alternativa às índias, por recomendação expressa dos missionários, que com esse gesto demonstram colocá-las no mesmo plano.
Vemos, portanto, que a fantasia de feminino que os portugueses traziam em sua mente era mesmo a da puta. E as mulheres da terra tiveram que carregar essa projeção sobre a cabeça.

A Grande Mãe do Brasil é uma índia, esse é o nosso mito e nossa verdade histórica e psicológica. Temos que começar a considerar esse mito, e não apenas o da grande mãe babilônica, grega ou romana, que tanto se estuda nos círculos junguianos. De novo: se Erich Neumann conhecesse a mitologia brasileira, ele sem dúvida a teria incluído em seu trabalho sobre o tema. Já nossa consciência coletiva não reconhece mesmo a existência dessa mãe ancestral, que não aparece em produto algum de nossa cultura ou de nossas especulações pseudo-psicológicas de que escola for.Mas para não perder o fio: diz Darcy Ribeiro, a meu ver de modo brilhante, que foi preciso, no século XIX, inventar-se um país chamado Brasil para que esse povo de Zé Ninguém pudesse dizer que pertencia a alguma coisa.
Essa é a verdadeira questão por trás da factualidade ostensiva da proclamação da Independência pelo filho rebelde do monarca português, identificado com a jovem nação que pretendia ser levada a sério. É como se a psique coletiva, atingido aquele ponto de saturação, estivesse a pressionar no plano institucional pela formalização de um mínimo de persona coletiva, para assim assegurar a manutenção do vácuo psíquico interior de que éramos feitos. O povo brasileiro estava finalmente querendo ser dono de seu próprio nada. Ganhamos então um país internacionalmente reconhecido, que nos permitia sermos o pouco que éramos. E é preciso olhar para o passado histórico nesses termos, porque só assim se entre em contato com aquela revolta no fundo do estômago que possibilita a recusa do status quo, que permite dizer: "não precisa necessariamente ser assim". Contamos hoje com um dos plantéis genéticos mais ricos do planeta e com um dos complexos culturais mais diversificados que se possa conceber no mundo atual. O desafio que nos cabe é: será ou não possível extrair a quintessência alquímica dessa matéria prima? Será que nossa consciência já chegou a esse ponto?

A alma ancestral brasileira é hoje uma alma penada; e aquela que se constitui a partir de 1500 sofre de um complexo nacional de inferioridade e está com sua energia criativa reprimida. Não tem sido mais possível sonhar no Brasil, um sonho coletivo compensatório das misérias de uma sociedade injusta que nos dissesse o que o inconsciente espera de nós e o que nos reserva como possibilidade histórica. Esse sonho foi esboçado nos anos 60, mas a repressão militar foi longe demais e traumatizou nossa ousadia onírica.

Gostaria de ir concluindo estas reflexões abordando dois temas: um mito que rapidamente comentarei e alguns sonhos que o grande pajé Kamaiurá Takumã teve em setembro de 1996 durante uma passagem sua por São Paulo (esses sonhos foram registrados pela antropóloga Carmem Junqueira, que em seu contato de muitos anos com o pajé tem estudado a sabedoria ancestral desses índios).
Comecemos pelos sonhos. Takumã chega e é inicialmente hospedado numa casa de praia adjacente a uma área de mata onde já haviam sido vistas cobras. Ele foi alertado sobre o perigo, especialmente porque tinha consigo a mulher e dois filhos pequenos. Em sua primeira noite nessa casa ele sonhou: "Uma enorme cobra apareceu e tive medo. Mas fiquei calmo quando ela me disse que era ela quem tomava conta daquela mata, ela era o chefe das cobras. Disse então que eu não precisava ficar preocupado, porque nada de ruim aconteceria para nós".
Eis aí a alma ancestral se manifestando sob forma de cobra, dando-lhe força e proteção para enfrentar cobras literais ou metafóricas de nosso mundo civilizado. Ela é o grande poder do inconsciente. É o verbete mais longo de qualquer dicionário de símbolos. Esta é uma cobra-mãe, que comanda o próprio mal, fazendo-se presente de maneira tão viva no sonho de um índio preocupado com a selva dos brancos.
Mas vejamos o último sonho de Takumã imediatamente antes de seu regresso ao Parque Nacional do Xingu: "Um índio bem velho chegou perto de mim e me perguntou se estava tudo bem e se eu tinha conseguido alguma coisa. Respondi não, não consegui nada." A antropóloga que o hospedava ficou cismada ao ouvir esse sonho e perguntou o que era essa "alguma coisa". Ele respondeu: "um Fax". Os Kamaiurá estão organizando uma associação cultural e estão pensando em obter um aparelho desses. Esse sonho, quinze dias depois da cobra, mostra que o inconsciente de Takumã abarca desde a serpente arquetípica até a tecnologia de ponta.
Nós junguianos estamos querendo sonhar mais é com a cobra. Duas linhas se cruzam: alguns de nós queremos entrar um pouco no lado de lá, e os índios no de cá. E a situação agora é de ou vai, ou racha, porque eles estão por um fio de desaparecerem por completo. Hoje há pouco mais de duzentos mil índios no Brasil, quando na época do Descobrimento havia de seis a dez milhões. Havia mais de mil línguas indígenas, tesouros irremediavelmente perdidos. Uma língua leva mais de mil anos para se constituir. Como um milagre, sua estrutura emerge inteira do inconsciente. Centenas de línguas já desapareceram no Brasil sem terem deixado o menor registro e continuam até hoje a morrer. Algumas são faladas por meia dúzia de pessoas e é provável que lá pela metade do próximo século já não tenha sobrado mais nenhuma. O trabalho dos que estão coletando mitos vivos nas línguas originais é, portanto, da maior importância, como por exemplo o que vem sendo realizado pela antropóloga Betty Mindlin. Os índios estão perdendo a terra e a cultura.
No final de 1996 os jornais publicaram a notícia de que um cartel internacional especializado na comercialização de gens humanos para pesquisa industrial está oferecendo amostras de sangue Suruí. Essas amostras genéticas serão vendidas por enormes quantias para indústrias farmacêuticas interessadas em pesquisar novas formas de combater a obesidade a partir da manipulação genética. Esse mal, tão difundido nas sociedades de consumo devido ao desequilíbrio das formas de alimentação é inexistente entre as populações indígenas. Se for criado um medicamento eficaz, baseado num princípio novo, certamente os lucros serão consideráveis - mas os Suruí não estarão por certo na lista de distribuição de dividendos. O sangue indígena, capaz de curar males da nossa civilização, continua a ser roubado - eis aí uma imagem absolutamente high-tech e contemporânea que merece nossa atenção. Os novos símbolos que denunciam o contínuo drama de nossa alma ancestral vazam até pelos jornais; mas a consciência coletiva ainda não está sensível o bastante para elaborá-los enquanto tema de auto-conhecimento.
Outra versão moderna da pirataria que imperava na época das grandes navegações leva o nome de Plant Medicine Corporation. Esta organização, voltada para assegurar royalties de substâncias curativas do Terceiro Mundo, que podem mais uma vez dar lucro ao Primeiro, já patenteou o uso do cipó alucinógeno huasca. O tráfico de especiarias ou de pau-brasil ainda não terminou, ele se renova e se reatualiza a cada década e é como se esse contínuo saque à cultura milenar não tivesse ainda sido compreendido em todas as suas implicações - especialmente as psicológicas. Caso o Brasil, portanto, venha a adotar uma política de efetiva proteção de seus recursos naturais e culturais e decida produzir industrialmente o chá de huasca, que embora ainda não pesquisado em seus potentes efeitos serve de base para a organização de novas religiões (Santo Daime e União do Vegetal) e permite a um crescente número de adeptos a vivência imediata da transcendência do ego, será necessário que nosso governo pague royalties a uma corporação americana pelo uso de uma erva medicinal milenarmente nossa.
Nos anos 60, um assunto desses inflamaria a retórica antiimperialista dos movimentos de esquerda; hoje, já não mobiliza mais ninguém. E, no entanto, eis aí, deslavado, mais um símbolo que reflete a degradação de nossa alma ancestral e que sintetiza o estado de inviabilidade histórica que ameaça essa parte cada vez menor de nossa população através da qual nos conectamos às raízes.
Os índios ao final perderão suas terras, morrerão de doenças várias, serão assimilados como mão-de-obra não qualificada na camada mais baixa da sociedade brasileira. Não surgiu até hoje uma política indigenista que minimamente funcionasse e os defendesse em seus direitos mais elementares. Mesmo aqueles que honesta e sinceramente defendem os índios não sabem mais o que fazer em âmbito nacional.

Terminarei esta reflexão com um breve comentário sobre um dos mitos coletados por Betty Mindlin em sua pesquisa de campo. Desde que o ouvi não fiquei mais em paz. Algumas poucas vezes nos reunimos em meu consultório para falar dessas histórias, cada um a partir de seu ponto de vista. Não pretendíamos chegar a interpretações completas, mas antes a tocar o fundo do poço. Ainda não se tem uma metodologia adequada que dê conta de um material tão vasto, com tantas variações, e que permita uma leitura tanto poética quanto antropológica e psicológica. O método junguiano tem aí um enorme desafio à sua frente.
Pessoalmente, não me afino com a metodologia de Lévy-Strauss, que só vê nos mitos diagramas cifrados de uma estrutura social abstrata e nunca da alma que os gerou e que, portanto, pode estar neles espelhada. O mito em questão pode ser intitulado "A cabeça voraz", "A cabeça voadora" ou ainda "A cabeça que perdeu o corpo" e é narrado em várias tribos. Vou reproduzir, resumidamente, a versão Makurap:
"Marido e mulher vivem em harmonia. Tudo vem bem em sua vida na aldeia. Toda noite, eles dormem juntos na rede e toda noite a cabeça da mulher se desprende do pescoço e vai voando em busca de comida em outras aldeias. A cabeça se alimenta durante a noite e antes do dia raiar volta e se encaixa novamente no pescoço. Quando acorda, o marido vê a mulher a seu lado como sempre, mas com uma pequena gota de sangue no pescoço. Ambos ignoram o que a cabeça faz em seu vôo solitário noturno. Um dia, a mãe da moça entra na maloca e surpreende o genro ao lado do corpo decapitado da filha e imediatamente o acusa. O corpo é enterrado e a tribo toda se volta contra o marido, a quem só resta fugir. A cabeça volta e não encontrando mais o corpo que lhe corresponde, pousa no ombro do marido, onde se fixa como uma segunda cabeça. Este fica desorientado, porque quando quer uma coisa, a cabeça quer outra. Esta começa a entrar em decomposição. O homem tenta se livrar dela, mas ela resiste. Finalmente ele a arranca do ombro, foge pela floresta adentro e ela o persegue até que o bacurau acaba levando-a para o reino dos pássaros..."
Creio que as imagens deste mito absolutamente brasileiro e autóctone nos dizem que a busca de conhecimento é arquetipicamente vedada às mulheres. Por algum tempo é possível encontrar alimento novo, mas este não pode ser integrado. O tabu então determina que a mente da mulher deve ficar ali ao pé do fogo onde cozinha, é lá que sua vida transcorre e lá estariam seu sentido e seus limites.
Encontrei uma idéia similar no trabalho de Alícia Fernández, uma psicopedagoga argentina que estuda as dificuldades das professoras em desenvolverem um pensamento próprio. Essa autora encontra no Gênesis a origem desse mandato proibitivo: Eva é punida por ter ousado aceitar da serpente o fruto da Árvore do Conhecimento proibido por Deus. O tema é amplo e pode nos levar longe, mas aqui não se trata apenas de um problema arquetípico da mulher indígena, e sim algo que diz respeito ao princípio feminino como um todo, manifestado tanto nas mulheres como nos homens, na cultura ou na alma. Mas há também outra possibilidade de leitura. Houve um tempo mítico em que o princípio masculino e o feminino estavam equilibrados e em harmonia, mas a partir de um certo ponto o último não pôde mais se expandir porque não é mais possível integrar qualquer transformação. Nossa alma ancestral é como essa cabeça. Ela perdeu o corpo, que seria a materialização de uma nova síntese - o corpo não existe mais, foi enterrado, desintegrou-se no inconsciente - e busca outro, ao qual, no entanto não pode se conectar por uma impossibilidade natural. Não se trata aqui de uma analogia à figura alquímica do andrógino, porque nesta, masculino e feminino estão diferenciados mas unidos na base, num corpo que pertence às duas cabeças. No nosso mito a imagem é outra, a situação psíquica é outra. Essa cabeça desencorpada é nossa alma perdida vagando penada pela noite da inconsciência sem poder se encaixar naquele corpo que seria nossa própria realidade humana aqui e agora, uma realidade física, corpórea, psíquica, cultural, social e política. O simulacro de integração do princípio feminino arquetípico - isto é, ancestral e imemorial - justamente por não ser uma verdadeira integração, mas algo falso, forçado, postiço, apodrece e cria dissociação, obscuridade, fantasmagoria. A consciência que nos orienta a todos procura então loucamente se livrar daquele encosto maldito, para poder continuar unilateralmente estruturada em sua racionalidade dominante. E aquilo que poderia transformá-la e revitalizá-la desaparece do campo conhecido: dissolve-se no céu do Cruzeiro do Sul, de onde até hoje nunca mais voltou. Vejo portanto nesse mito o drama da separação não redimida dos opostos e é esse o grande problema arquetípico que nos afeta essencialmente a todos.


(Palestra proferida em outubro de 1996 no Moitará, encontro promovido em Campos do Jordão pela Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Foram feitos alguns acréscimos. O autor é analista formado pelo Instituto C. G. Jung de Zurique, membro da Sociedade Internacional de Psicologia Analítica e da Sociedade Suíça de Psicologia Analítica. É sociólogo, advogado e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Chicago. Publicou O Espelho Índio - os jesuítas e a destruição da alma indígena, Ed. Espaço e Tempo, 1988, e vários artigos.)


Fonte do texto:
http://psiquejung.blogspot.com