"E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava?
Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate.
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu."

(Clarice Lispector )







quarta-feira, 10 de junho de 2009

Cultura e Linguagem, ruminando com Adolpho Crippa














Fiquei meditabundo, depois da seqüência de cartas do compadre Eurico. Embora as suas missivas tenham agradado muito ao pessoal aqui do Sítio, pois traziam uma simpática e deliciosa fauna: uma galinha e seu respectivo ovo, uma bacorinha; coisas bem nutritivas e conhecidas da gente intra-histórica, cá deste Sítio d’Olinda. Inclusive, o compadre esqueceu sob a mangueira, os tais curvos ganchos da interrogação do “seu” José(*).

Fiquei especialmente intrigado com uma imagem do nascimento da fala, da comunicação entre os homens que grifei no trecho abaixo:

“A cultura precede o homem e lhe oferece as possibilidades de agir e de fazer. O homem não poderia inventar a cultura, por mais que realizasse obras singulares nos diversos campos em que seu espírito possa se manifestar. O homem não cria a cultura. Ao contrário, ele é constituído pela cultura, nele mesmo, no seu mundo, na sua linguagem, nos seus valores. A cultura seria assim uma anterioridade absoluta frente à liberdade, uma anterioridade absoluta frente à imaginação, uma anterioridade absoluta frente à linguagem.
Os homens não criam a linguagem. Para isso teríamos que imaginar um povo não falando nada e, de repente, reunido, acertando sons, imagens, conceitos, ou seja, descobrindo ou escolhendo uma certa maneira de falar. Ou então um conglomerado de entes, que humanos não seriam ainda, escolhendo os símbolos, as formas de suas manifestações no campo da religião, da arte e da ciência. Isso é algo impossível. A cultura seria assim um precedente absoluto frente à consciência e frente à liberdade. Nenhum homem nasce por acaso e do nada. Nenhum homem surge absolutamente perdido no espaço. Há uma anterioridade determinante
."


Fico imaginando, enquanto penduleio na rede, cá nesse cantinho aprazível de minha eterna Olinda, fico ruminando e rindo só, tentando montar a cena da passagem acima: centenas de pitecantropos, reunidos numa caverna, ou numa clareira pré-histórica, a combinar os fonemas de uma língua a ser criada. Deviam pelo menos grunhir, emitir algum som para, deles, escolherem a matriz fonética da nova língua. Além de estranha, a cena é hilária.

Parece brincadeira, mas a argumentação do Dr. Crippa é fulminante. Eu, pelo menos, considero essa cena impossível de ter ocorrido. A tarefa ainda seria mais difícil, ao pensarmos que não se tratava apenas da escolha de sons, fonemas, mas também de símbolos, imagens, conceitos. É claro que isso deveria ser uma tarefa de séculos, talvez de milênios. Mas, com certeza tenho de concordar com o que afirma indiretamente o Dr. Crippa, à página 183, de seu Mito e Cultura, quando questiona:

“Como poderia o homem criar palavras e símbolos antes de possuir o sentido da comunicação? Como edificaria uma casa antes de sentir a necessidade de habitar? Como ergueria um templo antes de uma experiência religiosa do sagrado?”

É ele mesmo quem responde a seguir:

“Há uma linguagem primordial, da mesma maneira que há um residir antes do habitar, um sentir e um imaginar que antecipam as expressões artísticas, uma manifestação primordial do sagrado antes de uma verdadeira experiência religiosa.”

E arremata, dizendo:

“para agir e expressar-se em formas e atividades significativas, o homem deve estar dotado de formas radicais que tornem possíveis tais expressões.”

Há uma questão que se impõe a essa altura do tema. Quem leu todas as cartas anteriores já sabe que o que torna possível o agir e expressar-se, ou seja, o que possibilita a ação humana no mundo, e o lugar, a instancia em que ele se instala, segundo Dr. Crippa, é a cultura. A cultura é o alvéolo da civilização humana na Terra. Mas eis que ela é precedida do Mito. Eis a anterioridade absoluta! Eis o prius! Eis a fonte inesgotável dessas protoformas radicais que norteiam o homem em sua rota imaginativa e criadora!
Ops, ia esquecendo da questão que se impõe nesse ponto da peroração. Aqui está ela:

Já havia pensamento nesse agrupamento humanóide? Ou seja, a razão já iluminava as cavernas de onde sairia a horda dos Homo Sapiens?


Eu não ousaria responder isso aqui, nesse exíguo espaço. Mas vou tergiversar com uma coisa que descobri esses dias, lendo História Oral e Memória, de outro sábio, o Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro. Especialmente no capítulo 2 – A Língua no Asfalto, p. 35 a 51, da minha edição, que é de 1992.
Bem, cotejarei esse capítulo, com pinceladas do que entendo ser a Razão Vital, do espanhol Ortega y Gasset, pois pretendo indicar uma possível resposta à pergunta feita acima.

O Dr. Montenegro cuida nesse A Língua no Asfalto, da aquisição do conhecimento por certa moradora do bairro de Casa Amarela, no Recife, chamada Dona Tôta, mulher semi-analfabeta, inserida na luta social, em meados de 1964, sob a égide da ditadura, portanto.
Dona Tôta, que tinha poucas luzes, se percebia ignorante. “Eu já fui burra”, dizia anos depois. Não obstante teve uma atuante participação nas reuniões secretas, que fundariam uma associação de moradores e de operários, preocupados com a situação social. Nesse percurso ela se apodera da fala de outra classe social, do discurso político, de tal forma que todos pensam que ela tem um bom nível de escolaridade.

Mas o que vou tratar ainda não é isso.
O Dr. Montenegro nos conduz por esse percurso da aquisição do conhecimento, pela Dona Tôta, demonstrando que a fala é decisiva para quem vive a radicalidade cotidiana do “não ter”.
Por isso articular o ato de pensar a fala, construir uma retórica, desenvolver argumentos em torno de um saber, exigiu dessa dona de casa iletrada, um longo processo de observação e aprendizagem.
Exigiu dela a utilização da razão. Isso mesmo. Da razão como instrumento para sobreviver num mundo hostil. Ou seja, o uso efetivo da razão vital.
Aqui recorro à imagem do pensador Ortega y Gasset, que compara a razão vital àquela varinha que usamos para experimentar a profundidade do trecho de um rio que queremos atravessar. A razão enquanto um sentido semelhante ao ver ou ao apalpar. A razão diferente, daquela razão pura, abstrata, físico-matemática. Não há negar a existência daquela. Mas a razão usada no cotidiano do operário, do lavrador, da doméstica, do humilde catador de lixo, dos iletrados, dos sem história (ou intra-históricos), dos sem escrita. Essa é que entendo como a razão vital.
Ufa! Creio que já posso remeter essa situação àquele contexto do grupo de homens das cavernas.
Ali também não havia história, nem escrita, mas devia haver a razão, como a concebeu o filósofo espanhol. Aquela que ajuda o homem a 'saber a que se ater', no oceano das coisas em derredor e no emaranhado da inóspita realidade. A razão vital, pois, é indispensável instrumento para refletir a luz do mito, dentro das cavernas. Uma das protoformas radicais do Dr. Crippa, deve ser, sem dúvida, a razão. Mas a Razão Vital orteguiana, enquanto apetrecho primordial do homem, dentro da Cultura.

Portanto, finalizo essa meditação, com um abraço fraterno aos intra-históricos do Sítio d’Olinda e do mundo, que, apesar de iletrados, conseguem compor, através de ritos e signos peculiares e cotidianos, um discurso vital e detentor de um conhecimento, que lhes empodera e os faz derrubar os óbices da segregação e vencer as barreiras invisíveis, interpostas pelos letrados e eruditos às camadas populares da sociedade.

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Basta, pessoal!
Espero que tenha me feito entender.
Meu discurso é paupérrimo.
Sei apenas ruminar, como o boi no pasto. rsrsrs

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(*) José Ortega y Gasset,
filósofo raciovitalista,
autor de Meditações do Quixote.


Fonte da img.:
http://www.eb-outeiro.rcts.pt/homem_cavernas.jpg

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terça-feira, 2 de junho de 2009

A Cartada Final: Mito e Cultura - Adolpho Crippa

Giselle Bundchen, entronizada sobre os ameríndios .
(um mito moderno, explorado em peça publicitária)


Prezado Compadre Carlinhos,

Vim, afinal, concluir essas tais cartas, com uma “cartada final”.
Para isso, revisemos a carta da postagem anterior:

Para o nosso resenhado, o Dr. Adolpho Crippa
“há uma linguagem primordial, da mesma maneira que há um residir antes do habitar, um sentir e um imaginar que antecipam as expressões artísticas, uma manifestação primordial do sagrado antes de uma verdadeira experiência religiosa.”
Baseado nessas premissas, o sábio culturalista brasileiro chega à conclusão de que:
“para agir e expressar-se em formas e atividades significativas, o homem deve estar dotado de formas radicais que tornem possíveis tais expressões.”Foi a essa altura da prosa que lancei a minha interrogação, feito quem joga um curvo anzol na ponta de uma linha invisível. Questionava eu, ao final da carta anterior:

Se o espírito humano necessita dessas formas radicais que preexistiam numa anterioridade absoluta, num prius, de que instância recolhe o homem essas protoformas que orientam sua força imaginativa e criadora?


Agora é que a porca torce o rabo!

E essa ancestral imagem do rabo da porca, quase arquetípica, que simboliza um nó, ou o esforço do suíno para resolver algo, lá no seu chiqueiro, essa imagem nos ajudará a investir contra os moinhos de vento das nossas interrogações .
E por falar em moinhos de vento, aí está outra analogia quase mítica, que nos vem sendo ditada, desde Cervantes, há uns 400 anos atrás.

Quase que eu digo, no parágrafo anterior, o nome dessa instância em que vivem as tais protoformas do Dr. Crippa, que até lembram aquilo que Platão chamava de idéias, mutatis mutandis. Portanto, essas singelas imagens dos moinhos de vento, ou mesmo do rabinho torcido da bacorinha, são o que chamamos de deslocamento metonímico, ou metafórico, Um jeito que a mente humana encontrou de concentrar o que se quer enunciar, numa só imagem. Mal comparando, também, lembram os anagramas chineses. Pois é, compadre, essas analogias, quando condensam formas primordiais, de cunho profundo, guardadas no inconsciente coletivo, são os chamados mitologemas.

Mitologemas?

Mitologema ou mitema significa a imagem mítica essencial, que compõe, associada a outras, uma estrutura mitológica dramática, em si mesma completa. (Roberto Gambini)

Exemplo simples de mitologema, ou mitema:

Quem já ergueu um bebê e o jogou pro alto, num movimento de sobe e desce, não percebe que esse gesto lembra algo antiquíssimo, como o erguer de uma oferenda, ou da hóstia dos cristãos. Algo que se remete para o alto, à divindade. Esse é um exemplo próximo e simples do que pode ser um mitologema.
Outro mitologema, mais denso e remoto, gerador de mitos, é a sensação do queda de sol no crepúsculo. O sol poente. O sol ocidente. O Ocidente. A terra do crepúsculo.

Pois bem, os mitemas, ou mitologemas apontam para essa instância de compreensão de um prius, de uma anterioridade das formas, da região em que habitam as formas radicais, as protoformas, indicadas pelo Dr. Crippa.

Essa instância primordial é o Mito.

Não pretendo resumir um tratado, como é o livro do Adolpho Crippa, mas passo a compreender a cultura, enquanto anterioridade, enquanto alvéolo, a partir do aprofundamento da idéia do Mito, enquanto lugar inaugural das civilizações, genetriz do mundo factível, do provável e do possível. De fato não há possibilidade de comunicar, de habitar, sentir ou imaginar, sem as protoformas míticas dessas coisas num espaço do possível, ou seja, há uma ursprache, uma linguagem primordial, antes de existir as línguas, a comunicação humana. Da mesma maneira que há “uma manifestação primordial do sagrado antes de uma verdadeira experiência religiosa”.
A cultura, portanto, é o berço das coisas, das ações e das realizações humanas, do que é feito e do que é possível ainda fazer. A cultura é filha única do mito e mãe das civilizações.


Com isso, abro a possibilidade de finalizar esta missiva, apontando para leitura da obra clássica do culturalismo brasileiro, Mito e Cultura, do Dr. Adolpho Crippa.

Concluo, meu compadre Carlinhos, que essa carta já se alonga por demais, renovando os mais cordiais sentimentos de estima e admiração.

Abraço fraterno.

Eurico
Recife, 02/06/2009